Sobre “Rei Lear”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readAug 27, 2024

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Foi a própria Alexia quem me contou, uma vez, que o termo drag seria um acrônimo criado por Shakespeare nas rubricas de suas peças: significaria dressed resembling a girl, vestido de modo semelhante a uma garota. Alexia Twister manja muito da arte drag. E manja muito de teatro.

Rei Lear. Crédito: Matheus José Maria

Na encenação de Ines Bushatsky, nove drag queens vão para a cena para contar a tragédia do soberano que divide seu reino baseado nas demonstrações de amor de suas três filhas. Nisso, a ambição se finge de amor, a necessidade de adoração se veste de generosidade, pais só retomam a visão depois de cegos, bobos veem o ridículo na tragédia e a loucura e a morte se aproximam, justamente porque tudo está fora do lugar.

Lear é uma tragédia complexa porque, em muitos momentos, o que é dito significa exatamente seu negativo. Personagens mentem para os outros da mesma forma que mentem para si mesmos, e mesmo as verdades vêm em enigmas, vêm de modo indireto, pela tangente. As coisas são ditas em sua própria sombra, e mesmo o que é dito sem volteios destoa tanto dos discursos indiretos, maleáveis, melífluos, que se torna irreconhecível. Não por acaso, Cordélia é condenada como uma filha cruel justamente por falar que ama o pai.

Os significados, seus duplos, negativos, vizinhos e ábditos são materiais poéticos comuns à Bushatsky e a João Mostazo (aqui, assinando a adaptação dramatúrgica e a assistência de direção).

Individualmente ou em dupla, ambos já investigavam os efeitos do falso, a hiperteatralidade, os estranhamentos estéticos advindos de uma mistura de referências que vai de David Lynch a Hermes & Renato, um tom farsesco que flerta com o uncanny valley, um senso de humor brejeiro que mascara uma violência ou uma ameaça em outros trabalhos em que já estiveram envolvidos: Roda Morta (escrita por Mostazo e atuada por Bushatsky), B de Beatriz Silveira (dirigida por Bushatsky, com dramaturgismo de Mostazo), A Gente Te Liga, Laura (direção e dramaturgismo de ambos) são exemplos de espetáculos que habitam o mesmo universo, em que o fake hiper-estilizado é um artifício utilizado para expor as tensões e pressões às quais suas personagens estão sujeitas.

Assim, parece natural que a dupla agora se debruce completamente sobre a estética e a poética drag — em boa medida, parece uma progressão natural de sua pesquisa, em que o superlativo e o sensível se chocam e se incorporam.

Rei Lear. Crédito: Matheus José Maria

Óbvio, o drag proposto por Shakespeare em suas rubricas (caso a lenda seja mesmo verdade) é muito diferente do drag posto em cena aqui. Ninguém está “vestido de modo semelhante a uma garota” para fins ilusionistas, como no teatro elisabetano. Trata-se muito mais de borrar limites e confundir compreensões sobre gênero do que emular padrões do que é socialmente esperado deles.

Trata-se de se aprofundar numa estética queer , desviante da norma, alta, barulhenta, grande, que ocupa espaço, sem remorso, que não pede licença, que tem um vocabulário próprio, que tem seu próprio jeito de ver o mundo, compreendê-lo, habitá-lo, devorá-lo, antropofagizá-lo, regurgitá-lo e atuar nele. Não se trata de estar dressed resmbling as qualquer gênero, mas sim de estar dressed as a fuckin superlativo.

Assim, o jogo de duplos no qual Bushatsky e Mostazo são tão hábeis se estabelece. Aparentemente (mas só aparentemente), a tragédia shakespeariana está diluída, apresentada como se fosse um show de boate enevoado por máquinas de fumaça, iluminado por luz de balada, performado para o entretenimento dos presentes. E no cerne disso, as reflexões sobre família, pertencimento, envelhecimento, ganância, sexo, desejo, política, remorso e morte caras à humanidade e presentes em diversas de suas manifestações artísticas.

Um excelente exemplo do superlativo proposto em Lear é a cena em que o rei louco enfrenta uma tempestade. “Enfrenta” é a palavra-chave. Imenso em sua tirania e fragilidade, Lear é uma força da natureza cuja fúria impotente só encontra igual em uma tormenta. Lá está o rei, igualmente débil e poderoso, desafiando a própria natureza, enfrentando o temporal de fora com o temporal que carrega em si mesmo… numa batalha de dublagem.

A descida à loucura de onde Lear só retornara na clareza da morte é feita durante uma dublagem de It’s Raining Men, clássico queer das The Weather Girls. É ao mesmo tempo engraçado, camp, desolador. É uma dissonância estética e temática que abre diversas portas de fruição e compreensão tanto sobre a mente de Lear, quanto sobre a pateticidade da tragédia humana, quanto sobre a potência da arte drag, sobretudo num país latino-americano onde os índices de violência contra a população LGBTQIAPN+ seguem escandalosamente altos, e onde a violência simbólica do imperialismo estadunidense pasteuriza nossa visão sobre a arte drag a partir e ao redor de Drag Race.

Pra quem viu ISSO AQUI, sabe?

A interseção entre palco de teatro e palco de boate proposta no Rei Lear de Bushatsky e Mostazo não só evidencia o caráter artístico da performance drag, e a tessitura dessa arte, como tira Shakespeare da compreensão equivocada de que é necessário encená-lo com fleuma e mesóclise: Shakespeare é popular em sua linguagem, em seu formato e no que carrega de sublime e mundano. Assim como a arte drag.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Rei Lear. Crédito: Matheus José Maria

Rei Lear
Cumpriu temporada no Sesc Consolação entre 26 de julho e 25 de agosto. Fará nova temporada no Teatro Alfredo Mesquita de 05 a 29 de setembro.
Quinta a sábado às 21h; e domingo às 19h.
Teatro Alfredo Mesquita — Av. Santos Dumont, 1770 — Santana
Ingressos gratuitos

Direção: Ines Bushatsky
Texto adaptado e assistência de direção: João Mostazo
Elenco: Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores, Xaniqua Laquisha
Cenário: Fernando Passetti
Luz: Aline Santini
Figurino: Salomé Abdala
Visagismo: Malonna e Polly
Assistente de perucaria: Yuri Tedesco
Trilha sonora e operação de som: Gabriel Edé
Preparação vocal: Felipe Venâncio
Operação de luz: Pajeú Oliveira
Microfonista : Viviane Barbosa
Contrarregragem: Felipe Venâncio, Matias Ivan Arce
Costureiras: Caio Katchborian, Nana Simões, Salomé Abdala
Sapatos: Porto Free Calçados
Bordados: Alesha Bruke, Salomé Abdala
Fotos: Mariana Chama, Suka, Tetembua Dandara
Arte gráfica: Lidia Ganhito
Redes sociais: Mariana Marinho
Assistente de Produção: Gabriela Ramos
Direção de Produção: Tetembua Dandara
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica