Sobre “A gente te liga, Laura”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readApr 16, 2024

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“Estou tão cansada” diz Nina, lá pelo final de A Gaivota, de Tcheckov. Ela comentava sobre a realização do seu sonho — tornar-se atriz — e realizava que este era, de fato, um pesadelo.

“Estou tão cansada” também é uma fala que Laura Paro — todas elas — diz diversas vezes ao longo de A gente te liga, Laura, do núcleo F de Falso, escrita por Ines Bushatsky (também diretora) e João Mostazo (também assistente de direção).

Laura(s) diz(em) isso não apenas porque faz parte da cena que lhe foi pedida para o teste em questão mas porque, de fato, está(ão) cansada(s).

A Gente te Liga, Laura. Foto: Divulgação

Não é de se espantar: o teste é uma espécie de moto-contínuo do qual nós vemos só uma parte, mas cujo movimento incessante já vem acontecendo desde antes de a plateia chegar, e que seguirá acontecendo quase que inalterado. E, presa(s) pela força centrípeta desta máquina, está(ão) Laura(s).

Neste terceiro espetáculo do núcleo, cuja pesquisa recorrente tem sido sobre os efeitos do falso (nas palavras da diretora e pesquisadora: “(…) dispositivos que colocam em dúvida a percepção do espectador, gerando, ainda que por um instante, um momento de engano quanto à presença dos corpos e das vozes em cena”), o elenco reveza-se ora como a atriz sendo testada, ora como outras engrenagens da máquina: produtoras de elenco, outras candidatas ao papel, profissionais de foley, etc.

A partir de dispositivos simples (todo mundo veste calças jeans, camiseta branca e peruca loira similares), Bushatsky e Mostazo criam Lauras de Schrödinger: todas, ao mesmo tempo, são e não são Laura (às vezes também Paula, olha que doideira).

Ora se fundem plenamente, numa simbiose orgânica, ora se fagocitam, ora brigam uma pelo espaço da outra, ora se repelem. Ora se reconhecem e se identificam, ora se estranham. Ora mergulham nas suas similaridades, tornando-se todas Lauras, todas Laura, um Megazord de Lauras, ora lutam pelas suas identidades particulares (a mão expressiva, o sotaque que não é “neutro”).

A Gente te Liga, Laura. Foto: Divulgação

Nesta máquina de moto-contínuo, as Lauras se veem como concorrentes de um espaço diminuto e que segue diminuindo, como inimigas a serem aniquiladas, enquanto são vistas pelas Lauras “de fora” (que estão tão dentro quanto as outras, ainda que não vejam ou prefiram não ver) como peças substituíveis, insumos desvalorizados usados na manutenção da máquina.

Se as Lauras são a mesma, ou se apenas são vistas como peças sem identidade, sem particularidade, sem nada que as distinga de todas as outras (e, por isso mesmo, descartáveis) pelo sistema, de quase nada importa — ou talvez resida na imensidão deste quase nada uma carga trágica altíssima. Mas estão todas reféns deste sistema precarizado, neoliberal, que se fortalece a partir do enfraquecimento de cada uma das Lauras.

A Gente te Liga, Laura. Foto: Divulgação

Assim, A Gente te Liga, Laura vai criando um mal-estar referente aos abusos, aos absurdos e aos abusos absurdos do audiovisual, numa primeira esfera (questões de classe, questões de xenofobia, questões de desumanização etc) e sobre a situação precarizada em que vivemos, MEIs, empreendedores de nós mesmos, agentes de nós mesmos, contadores de nós mesmos, agentes de previdência privada de nós mesmos, investidores de nós mesmos, arrastados pelas ondas do mercado de trabalho em pleno capitalismo tardio, nos debatendo pra manter a cabeça acima da água ainda que estejamos todos, Ninas e Lauras, tão cansados.

E tem também a camada estética que faz parte da investigação contínua do núcleo, essa estranheza Lynchiana, essas Lauras que são tão parecidas mas tão diferentes, esses doppelgängers que se aproximam e se afastam dos seus sósias criando esse estranhamento bastante específico, um tipo de uncanny valley (pra usar um termo super em voga no audiovisual) que fica nos perturbando o tempo todo, que tem um quê de terrível, como num filme de terror dos anos 70, e que tem outro quê de engraçado, de TV brasileira dos anos 90 e de Hermes e Renato. Tem esse riso amedrontado, tem esse medo risonho, esse estranhamento fascinante.

A máquina segue seu moto-perpétuo, com Lauras (e Paulas e Ninas também) encerradas em seu interior. Muito pouco muda ao final da encenação, e isso diz muito sobre a máquina na qual nós estamos também presos.

Talvez alguma coisa mude pra melhor, quem sabe. Se for o caso, a gente te liga.

A Gente te Liga, Laura. Foto: Divulgação

A Gente te Liga, Laura
Cumpriu temporada de 05 a 14 de abril no Kasulo Espaço de Arte
Direção: Ines Bushatsky. Assistência de direção: João Mostazo. Dramaturgismo: Ines Bushatsky e João Mostazo. Elenco: Anna Talebi, Ariane Andrade, Débora Gomes Silvério, Lara Duarte, Laura Paro, Luiz Roveran, Suélen Augusto. Composição musical (canção): Anna Talebi e Luiz Roveran. Criação e Operação de Som: Luiz Roveran. Criação de luz: Ariel Rodrigues. Cenografia: Extemporânea. Arte Gráfica: Débora Gomes Silvério. Realização: Extemporânea. Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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