Tudo, Menos Um Prêmio — ou: uma lista de coisas bacanas em 2020 (parte 2)

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readDec 22, 2020

Convenhamos, qualquer um que passou por 2020 merece uma medalha. Quem, ainda por cima, fez teatro neste ano absurdo, merece ainda mais. Como, por exemplo, esta série de posts.

Ainda sobre Ôma

No último post, eu citei Ôma como um exemplo de pesquisa estética interessante, mas gostaria de apontar mais dois elementos do espetáculo que acho que valem a pena olharmos com mais atenção — especialmente porque eles também estiveram presentes em outros trabalhos instigantes: a imersividade/agência do fruidor promovida, sobretudo, pela dramaturgia.

Imersividade & Agência

Artistas puderam, ao elaborar espetáculos online, explorar novas formas de se relacionar com o fruidor e de inserí-lo no universo poético de suas obras. E, ao dar ao fruidor agência sobre a obra, tornavam-no parte dela.

Usemos ainda Ôma como exemplo: cabe ao fruidor realizar ações, solucionar problemas, resolver puzzles, vencer inimigos — enfim, reagir a tudo proposto pelo ex-petáculo.

Cabe a ele definir a duração da experiência (meia hora? duas horas? uma pausa pro almoço e voltar depois?) e o que ele vai explorar neste meio tempo:

Observar repetidamente a janela para ver se a paisagem muda? ok.
Ler os livros da estante para se aprofundar nas discussões socio-filosófico-políticas propostas? ok tbm.
Pular os vídeos performáticos para voltar ao gameplay? ok.

[[ Cabe um parêntesis aqui: Ao possibilitar, através do dispositivo da estante de livros, que o jogador/fruidor tenha acesso a trechos de obras que servem de estofo conceitual para Ôma, o texto dramatúrgico funciona como hyperlink possibilitando a abertura de novas conexões e a expansão da experiência. O mesmo vale para os demais enxertos dentro do gameplay. ]]

Claro, tudo no gameplay ainda é limitado a um número restrito de opções e estamos muito longe de um jogo-espetáculo sandbox, de mundo aberto, como um GTA da vida. Mas esse não é o ponto: o ponto é o tipo de relação que o espectador-jogador pode desenvolver com a obra ao explorá-la de um jeito totalmente diferente do analógico. E, sobretudo, o que isso pode vir a significar nas experiências futuras, caso esse tipo de espetáculo torne-se mais comum e a tecnologia avance.

Mas voltemos a falar do agora:

Em Caso Cabaré Privê, é importante notar como a dramaturgia não só permitia como incentivava e, em certa medida, dependia da atuação do espectador, que assumirá a função de investigador de um assassinato.

A introdução do espectador no universo poético de Caso já se dá no primeiro e-mail que ele recebe, com a confirmação do dia e horário em que acontecerá a reunião dos investigadores. Assim, a dramaturgia se esparrama para além da sessão: ela começa na véspera, quando o espectador já começa a compreender que desempenhará um papel na trama, e qual será ele. Qual será sua função no jogo.

Se a sessão de Caso é a avenida principal, a dramaturgia do espetáculo percorre também vielas paralelas — além do convite, está disponível online, para estudo do espectador/investigador, um dossiê com informações importantes para o desenvolvimento da inquirição.

Toda estrutura dramatúrgica é elaborada para apresentar ao público as circunstâncias do crime e, ao mesmo tempo, convocá-lo à ação, de tal modo que a participação de uma pessoa influencia a experiência de todos: um insight ou uma pista mal interpretada ditam o andamento da experiência e cabe a todos votarem por um dois dois finais possíveis: divulgar ou ocultar os resultados da investigação — e arcar com as consequências.

ExReality: tudo é dramaturgia

Assimilando à sua interface um box de chat e uma enquete diária, ExReality dependia da participação do público e pulverizava sua dramaturgia ao longo de nove dias, diversas lives diárias, votações e múltiplas janelas, justamente para discutir (afinal, o meio é a mensagem) a espetacularização, a gameficação da vida e o uso das redes.

O espectador, engajado na experiência de acompanhar 3 atores-jogadores 24 horas por dia e interagir com seus destinos, é combustível do espetáculo tanto quanto é a matéria sobre a qual o espetáculo reflete.

Espetáculos-festa

Curiosamente, ao longo de 2020 estrearam alguns espetáculos que tinham na prática da festa um de seus pilares principais. Cito aqui Clã_destin@, Vazante e A Festa de Aniversário Para O Amigo Que Foi Para Dublin — aqui cabe um disclaimer: como A Festa de Aniversário é dirigida por mim, fica aqui documentado que não estou elencando arbitrariamente meu trabalho entre os melhores do ano (embora, obviamente, o ideal fosse citá-lo entre os melhores do milênio, mas isso não vem ao caso agora). Estou citando o espetáculo porque ele é uma estrela na constelação composta em conjunto com os outros dois espetáculos citados neste tópico, e que reverbera a noção de imersão sobre a qual escrevo neste texto.

Bem, voltemos a Clã_destin@: na experiência multiplataformas — whatsapp, depois Instagram, depois Zoom e por fim, Spotify — cabe ao espectador/festeiro chegar a uma festa clandestina, sem ser pego nem expor seus pares. Entre trocas de identidade, senhas decoradas e a necessidade de ganhar a confiança dos atores/festeiros para conseguir chegar ao ponto de encontro, a própria permanência do espectador na experiência parece estar em jogo o tempo todo.

Se em Clã_destin@ a festa é o ponto final, nos outros dois exemplos ela é o ponto de partida da dramaturgia: em Vazante, o público é convidado para a festa de aniversário das gêmeas Cassandra e Gyselle e, entre algumas músicas e drinks, pode, pelo Zoom, conhecer mais da história das duas irmãs. Da mesma forma, em A Festa de Aniversário Para O Amigo Que Foi Para Dublin…bem, o título é autoexplicativo: o público comemora o aniversário de um amigo em comum, enquanto, paralelamente, a dramaturgia fala sobre a morte.

Pode ser interessante refletir sobre o que todos estes trabalhos, que agregam o espectador em experiências colaborativas e coletivas, significam neste 2020 de distanciamento social.

E para 2021?

2020 deixou claro que previsões para o ano que vem podem falhar, eventualmente. Ou você previu que ia viver uma pandemia este ano? De todo modo, caso sobrevivamos a este ano, talvez seja possível arriscar alguns palpites para o futuro próximo. Os meus são:

  • Mais espetáculos interativos/imersivos como meio de discutir o conceito de presença.
  • Mas experimentações sonoras, como o projeto Escutas Coletivas ou People vs Tesla.
  • Mais espetáculos híbridos analógicos-digitais, com parte do elenco e plateia remotos.

E muito provavelmente uma série de coisas que eu nem imagino ainda. E você? Se fosse arriscar um palpite, qual seria?

→ você pode ler mais textos sobre os espetáculos citados aqui nos links neste Medium ou no nosso Instagram.
Boa leitura :)

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica