Sobre “Um Jaguar Por Noite”
Ao redor de uma tecno-fogueira, um grupo de pessoas fala sobre suas vidas e seus mundos, seus desejos, imaginários e anseios. Ao redor da luz mecânica de um painel de LED tubulares, falam do som da chuva, do ruído de eletrodomésticos e de medicamentos para dormir — todos são a mesma coisa e possuem o mesmo valor no ritual do adormecer.
É ao redor desta fogueira mecânica, eletrônica, artificial, sintética, inorgânica que eles falam sobre seu mundo mecânico, eletrônico, artificial, sintético e inorgânico. Falam sobre a velocidade deste mundo: o ritmo maquinal, acelerado, imparável.
São Paulo, assim como Nova Iorque, assim como outros grandes centros urbanos, tem o apelido de “a cidade que nunca dorme”. As luzes nunca se apagam, o ritmo nunca diminui, a festa nunca termina — o que também significa que o silêncio nunca chega, e que haverá sempre alguém trabalhando para manter as luzes acesas, os comensais entretidos e o dinheiro fluindo.
Se a cidade nunca dorme, como podem os cidadãos dormir? Estimulados pelas luzes, ensurdecidos pelos sons, em constante estado de ansiedade graças ao capitalismo tardio, à beira do colapso climático, como repousar? Vivendo entre concreto, asfalto, ondas de wi-fi e lâmpadas de LED que imitam o pôr-do-sol que já não existe mais na cidade (além de outras 7 variedades de iluminação) e que são vendidas a R$ 69,90 mais frete pelo link do anúncio no Instagram, como romper com o ritmo da cidade produtivista, e encontrar outros estados de consciência? Como se conectar com o outro, consigo, com a natureza?
Ainda é possível?
Meu namorado me contou esses dias que leu uma notícia que dizia que nós somos as últimas gerações a ver vagalumes. A luz e a poluição da vida contemporânea tem afetado o ciclo reprodutivo dos vagalumes, de modo que em questão de algumas décadas, eles desaparecerão (me pergunto o que Didi-Huberman escreveria sobre isso). Outras notícias também dão conta de que a poluição sonora humana tem prejudicado os hábitos de diversos anfíbios, pássaros, répteis, peixes e mamíferos, atrapalhando desde a busca por presas à fuga de predadores, à escolha de parceiros e na orientação em processos migratórios.
Nós também temos dormido menos — com a ansiedade e a insônia se tornando problemas sociais, não apenas individuais — e com menos qualidade. Quando o sono é cooptado pela lógica produtivista da contemporaneidade (precisamos dormir para recarregar as baterias e funcionar plenamente no dia seguinte, tal qual um celular), então dormir também é produzir, também é trabalhar, também é servir ao capital. Trabalhe enquanto eles dormem, e durma o mínimo possível para voltar a trabalhar o quanto antes.
Sonhar, então, torna-se impossível. Torna-se um sonho.
Em sua nova obra, o 28 Patas Furiosas reflete sobre os choques entre a aceleração cada vez mais constante do fluxo do produtivismo (que se confunde com o fluxo da vida) e a necessidade e a impossibilidade de parar. Sobre o estado de delírio que é viver no pesadelo febril do trabalho precarizado às raias do colapso do planeta e sobre a possibilidade de cura contida no sonho.
Na dramaturgia (de Tadeu Renato em parceria com o grupo), lentamente o mundo da vigília sangra para dentro do mundo dos sonhos, ou vice-versa. O sono fugidio é sintoma da vida adoecedora, e a habilidade de saltar na vigília para o sono é tão mágica quanto saltar entre mundos, entre realidades — algo difícil de ser feito, mas também necessário, como uma prova de fogo, um rito de passagem, uma estratégia para se contrapor ao ritmo acelerado.
A encenação de Wagner Antônio organiza tudo de modo sugestivo, onírico, um tipo de ASMR (olha o tipo de coisa que bota a gente pra dormir, bicho) ao pé do fogo de LED, meio feitiço urbano, meio playlist Bons Sonhos do Spotify. Mais e mais o sonho entra, mais e mais o clima abstrato se instaura, e a peça ganha ares de instalação artística de convite à fruição num primeiro momento, e ao sono num segundo.
Nisto, lembra muito Sleep, concerto que o compositor britânico-alemão Max Richter chama de “canção de ninar de oito horas”. Richter pesquisa um tipo de música feita pra ser sonhada, não apenas ouvida, que possa acessar o mundo dos sonhos e outros estados de consciência de quem ouve. Um Jaguar Por Noite propõe algo similar, uma peça à meia-luz pra ser dormida, sonhada, não apenas assistida.
Que tipo de teatro vemos quando dormimos? Que tipo de teatro sonhamos? Como, conectados à hiperurbanização, à tecnologização, ao produtivismo, à obsolência programada, às plantas plásticas e às luzes que imitam o pôr-do-sol e às playlists de barulho de chuva gravado, à desconexão com a natureza conseguiremos nos conectar com algo em nós que é macio, frágil, indômito, animal, bicho? Que tipo de sono temos nessa desconexão? O que esse mundo acelerado nos permite sonhar?
Phillip K Dick perguntava no título do seu livro mais famoso: androides sonham com ovelhas elétricas? (E é interessante notar como vários livros de ficção científica dos anos 1960 pra cá falam muito sobre os processos orgânicos do sono e do sonho) Cabe então perguntar: e nós? Sonhamos com o quê?
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado
Um Jaguar por Noite
até 30 de junho de 2024
Sextas e sábados, às 21h e domingos, às 18h
Espaço 28 — Rua Anhaia, 987, Bom Retiro, São Paulo/ SP
Ingresso: R$30,00 (inteira) | R$15,00 (meia entrada)
Idealização e realização — 28 Patas Furiosas
Dramaturgia: 28 Patas Furiosas e Tadeu Renato
Encenação, cenário e luz: Wagner Antônio
Texto: Tadeu Renato
Atuação: Isabel Wolfenson, Maíra do Nascimento, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha
Música: Júlia Ávila
Figurino: Valentina Soares
Colaboração no trabalho vocal: Natália Nery
Arte gráfica: Julia Valiengo
Direção técnica e assistência de direção: Dimitri Luppi
Equipe técnica e assistência de iluminação/ cenografia: Camila Refinetti, Felipe Fly, Leo Sousa, Letícia Nanni e Lucas JP Santos
Registro em foto: Helena Wolfenson
Registro em vídeo: Marcos Yoshi
Assessoria de imprensa: Canal Aberto — Márcia Marques e Daniele Valério
Mídias sociais: Tadeu Ramos
Produção: Lud Picosque — Corpo Rastreado