Sobre “Tremores”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readMar 28, 2023

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Leticia Sekito em Tremores. Foto: Felipe Lwe

Enquanto vivo, é impossível ao corpo humano permanecer completamente imóvel: os movimentos involuntários indispensáveis à vida, como a respiração, os batimentos cardíacos, os movimentos peristálticos, ou mesmo as secreções do sistema neuroindócrino, todos são atestados de que o movimento é uma das assinaturas da vida.

São os movimentos, do mínimo e sutil às suas variações mais expandidas que interessam à Letícia Sekito em seu novo solo, Tremores.

Os movimentos como assinatura da vida, em tudo que ela tem de possível, agitado, violento, erótico; o movimento subjacente à aparente quietude e imobilidade que prenuncia os grandes tremores; o movimento da vida que ruma inevitavelmente à morte e à imobilidade — ou a outras qualidades de movimentação.

Sekito organiza seu solo num terreno onde elementos orgânicos e inorgânicos coabitam, não como uma dicotomia, mas como duas formas de se estar no mundo: melancias dividem o palco com réplicas em plástico, as placas de EVA, instáveis e móveis, estão sobre as rígidas madeiras do chão, o tecido plástico do figurino brinca com transparências e com o que revela e esconde do corpo da dançarina. É a soma desses elementos que fortifica a pesquisa de Sekito, é na intercessão entre o orgânico e o inorgânico — nos tremores que o possível choque destes dois universos causam—que sua dança estabelece sua fundação.

É também na interseção entre o belo e o horrendo, o atraente e o repulsivo, no choque entre estes polos — e nos tremores causados por este choque — que Sekito reflete sobre a vida.

Na coreografia que vai orgasmo à dor (ou vice-versa; ou de nenhum lugar a outro), Sekito propõe, em sua dança, tremores indefinidos difíceis de ler com certeza: gozo/agonia, choro/riso, dor/prazer, o corpo é o lugar de onde estas percepções nascem e onde elas morrem, e cada corpo é único em sua história e sua fisiologia, para dar conta delas, para entregar-se a elas ou represá-las (ou tentar).

Viver é, afinal, habitar esse mundo louco, onde a violência e a quietude coexistem. Viver é dançar por entre estas placas tectônicas que se movem, se chocam, enviam ondas de choque que nos fazem nos reestruturar, mudar a base, repensar apoios, negociar tensões, sentir os espaços vazios dentro do nosso próprio corpo mudar, nossa própria carne responder aos tremores de fora — ou fazer o oposto: usar os tremores da nossa carne para fazer o mundo tremer em resposta.

Na encenação, as melancias cumprem o papel de plataforma onde as metáforas de Tremores são projetadas: não só seu peso, sua opacidade, os sons que fazem ao rolar pelo chão ou os ajustes que o corpo deve fazer ao manipulá-las são essenciais para a movimentação da dançarina, como elas também representam bem o estado de força/fragilidade tão caro ao espetáculo.

Elas são pesadas, robustas, imensamente menos frágeis do que suas imitações de plástico e, ainda assim, são frágeis e, nessa fragilidade, encapsulam a força da vida e sua brevidade; representam o gozo e a delicadeza da vida, mas são esmagadas contra o solo, completamente quebráveis, e uma vez esmagadas, alteram o ambiente, deixando um rastro melado e um cheiro específico, uma assinatura de sua presença — estar num espaço, afinal, é negociar com este espaço, e mudar esta qualidade de estado é mudar a qualidade da negociação.

Viver significa deixar rastros — claro, matéria inorgânica também deixa rastros, Tremores está aí pra não me deixar mentir, mas vamos focar em viver e na matéria orgânica, por ora — e essa é uma das coisas que mais me encanta no mundo: como vários corpos juntos no mesmo cômodo mudam a temperatura dele, embaçando as janelas, suando o chão, alterando o cheiro do lugar; como nosso corpo deixa marcas no local onde sentamos, e como ele desgasta o calçado que usamos de modo muito particular, baseado na nossa pisada e no nosso peso. E a morte, em seus processos, deixa subprodutos, e o corpo cria outras relações com o espaço que ocupa, que transforma e pelo qual é transformado.

Há uma semana, meu tio morreu e, há seis dias, foi velado e sepultado. E é sempre uma experiência poderosa refletir sobre a morte neste contexto. Meu tio tinha uma presença inegável — era grande, e era tão energético e falante, que se tornava gigante (às vezes, insuportável) — ria alto, conduzia a conversa, não parava quieto. Ênfase em: não parava quieto. E lá estava ele no velório, ainda grande, mas parado; mais que parado, inerte. Sem vida, e na imobilidade específica da morte.

Não digo isso com peso, ou dor (bom, digo, mas não é o foco aqui), mas impressionado com o contraste. Impressionado com como a vida é moto perpétuo até deixar de ser. Impressionado com a beleza e a brevidade dela, com seu começo e seu fim e tudo o que tem no meio. Achando bonito que a vida é movimento e mudança e dança e ela acaba, mas o mundo segue vivo — e tremendo — e nós continuamos fazendo parte desse pulsar, e o Universo também segue agitado e em movimento até que a entropia cause a morte térmica universal, até que toda a vida cesse — ou encontre outra qualidade de movimento.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.

TREMORES
Concepção, Criação, Direção Artística e Dança — Leticia Sekito. Colaboração Dramatúrgica e Interlocução Teórica — Fernanda Raquel. Provocação — Estela Lapponi. Desenho de Luz — Ligia Chaim. Trilha Sonora — Inés Terra. Figurino — Joana Porto. Direção Visual — Leticia Sekito. Fotografia e Vídeo — Felipe Lwe. Preparação Corporal — Ivan Marcos Okyuama Sensei (Respiração Musubi no Kokyu-hô), Mara Guerrero e Mariza Virgolino (Pilates). Design Gráfico — Érico Peretta | Várzea Design. Assessoria de Imprensa e Gestão de Redes Sociais — Nossa Senhora da Pauta. Gestão do Projeto — Vanessa Lopes e Cooperativa Paulista de Dança. Produção — Corpo Rastreado | Danusa Carvalho e Gabi Gonçalves. Realização — Sesc São Paulo e Programa de Fomento à Dança — Secretaria Municipal de Cultura. Apoio Cultural — Associação Pesquisa de Aikido, Casa Líquida, Casa de Zuleika, CRD — Centro de Referência da Dança, Espaço Extranho, Espaço Tekoha, Oficina Cultural Oswald de Andrade e Sala Mara Guerrero.

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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