Sobre “Se Eu Estivesse Aí”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readJul 16, 2020

Olá, pessoa que eventualmente lê aqui. Quanto tempo, né? Pois é. Mas você há de me perdoar, o mundo está acabando e tal, preferi dar um tempo na produção de textos reflexivos e focar em passar álcool gel 20x por dia, lavar as compras do mercado (nada como achar que vai morrer por causa de um pacote de nuggets mal higienizado pra ajudar a lidar com ego inflado, a pandemia me poupou anos de terapia nesse sentido — mas me causou outros problemas que vão levar outros anos pra resolver, ah, as ironias da vida) e cuidar da manutenção das máscaras reutilizáveis. Enfim, cada um lida com o apocalipse do jeito que dá, né.

Quem andou lidando com o apocalipse muito bem, obrigado, é a ExCompanhia de Teatro, que desenvolveu a websérie Se Eu Estivesse Aí, experiência imersiva que usa de efeitos de filmagem, de edição e de sonorização 3D para colocar o espectador em primeira pessoa na experiência proposta. Em 10 vídeos que alternam entre a perspectiva das personagens ELA e ELE, o espectador é convidado a estar dos dois lados de um relacionamento em conflito, num mundo ao redor tão conflituoso quanto.

O que é interessante em Se Eu Estivesse Aí, então, é que é uma experiência que pode ser desfrutada em camadas distintas. Há essa primeira, relativamente simples, que é a do escrutínio da crise de um casal, mas há outras.

Existe uma investigação interessante sobre “escuta” e “comunicação” — nos episódios em que você está sob a perspectiva d’Ela e pode ouvir o que Ele está dizendo enquanto pode ver como Ela reage, pode coletar informações sutis mas importantes que impactam nos episódios seguintes ou que alteram a percepção dos anteriores e o mesmo continua acontecendo quando você passa para a perspectiva d’Ele, que reage à ela. Neste salto de um ponto de vista para o outro, da posição privilegiada de observador de ambas as partes, o espectador pode notar as distorções e ruídos na comunicação, as pontes e os abismos que a palavra pode causar.

Há também um pensamento interessante — e potencializado nos dias de hoje — sobre o conceito de presença. O que significa “estar” aí ou “estar” com alguém? “Estar” implica, de fato, na fisicalidade da presença, ou podemos “estar” com alguém através das redes sociais, ou da memória, ou mesmo daquilo que eu crio sobre outra pessoa — quando eu estou com você, eu estou com você ou com aquilo que eu criei de você? Quando, de fato, estamos juntos? O que isso significa? Estar é algo objetivo e concreto ou subjetivo?

Digo isso porque parece óbvio que Ela e Ele não estão juntos, falando do ponto de vista da fisicalidade, mas também estão juntos, às vezes até sufocando um ao outro, pelos áudios, pelas fotos, pelo histórico e pela dor. É uma discussão bastante profunda e a maioria dos meus momentos prediletos sobre Se Eu Estivesse Aí surgem dessa interrogação.

Outra excelente camada de fruição é a técnica e estética: dramaturgia, filmagem, edição, sonorização, tudo contribui para uma experiência imersiva que me colocou (tanto quanto possível dadas nossas atuais limitações tecnológicas) “dentro” d’Ele ou d’Ela. Esse tipo de relação com o espectador vem muito sincronizado com os debates mais recentes sobre as formas de arte tecnomediadas e o que elas podem significar como vanguarda artística e para redefinir a experiência do observador.

Claro, nem sempre eu estive 100% sincronizado com a personagem, mas sobre isso tenho duas coisas a dizer: nas horas em que eu estava mais “imerso”, a experiência era de fato espantosa — sobretudo nos primeiros episódios — ; e em certos momentos em que eu estava dessincronizado, isso também tinha sua dose de prazer: por exemplo, é interessante ver uma personagem manipulando um álbum de fotos e ouvir sobre o peso das coisas enquanto que eu, Fernando, não estou sentindo peso nenhum. Essa dicotomia sinestésica que surge da ruptura de ter meu cérebro enganado a ponto de pensar que está segurando algo, mas sem ter acesso às informações táteis, de peso, temperatura, textura, enquanto o áudio comenta justamente sobre isso é disparado um dos meus pontos prediletos de toda a experiência. E todo o bug que eu senti, só senti porque a técnica e a tecnologia estavam empenhadas em me levar a essa situação. Nesse sentido, acho Se Eu Estivesse Aí (e nisso o título ganha outra camada: não só se uma personagem estivesse com a outra, mas se eu, Fernando, estivesse lá, segurando aquele álbum ou provando o brigadeiro; estou com eles mas não estou com eles) brilhante, por contribuir tanto com o debate sobre a experiência do espectador.

Por fim, tem uma camada fruitiva que é a da revisita e da investigação. A narrativa não se desenrola só pelo que as personagens dizem ou ouvem, mas também pelo que aparece na tela, nem sempre no centro dela. Uma manchete numa tela de computador que aparece brevemente quer dizer muito, uma capa de um livro também, e ir pegando aqui e ali essas informações adicionais vai ajudando a compor um panorama maior, mais complexo e às vezes até metalinguístico — sim, tudo é em certa medida simulação.

Assim, Se Eu Estivesse Aí é uma experiência bastante sofisticada que merece ser vista no escuro, num lugar silencioso, com bons fones de ouvido e na posição indicada. E com bastante atenção, porque tem muito o que se observar. E preferencialmente, maratonando. Se você quiser, eis aqui o link: https://gshow.globo.com/series/se-eu-estivesse-ai/playlist/se-eu-estivesse-ai-confira-os-episodios-da-webserie-com-debora-falabella-e-gustavo-vaz.ghtml?fbclid=IwAR26unryqm1odDYI8xzoma5RG2U5WKR7aHT3ErofzkNGKOiM8jSbbo1UGd8

E se você já viu tudo (ou depois de assistir), me conta. Quero saber como foi pra você “estar” lá.

Se Eu Estivesse Aí
Com Débora Falabella e Gustavo Vaz
Roteiro Gustavo Vaz
Supervisão de áudio e trilha sonora Gabriel Spinosa
Idealização ExCompanhia de Teatro

Se Eu Estivesse Aí. foto: Jorge Bispo

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica