Sobre “Roda Morta”
Quando eu era moleque, há uns bons 10, 12 anos, era moda na minha cidade natal fazer peça sobre a ditadura militar. Claro que a minha cidade nunca foi conhecida pela potência de sua cena teatral (com certa razão), embora tivesse bons grupos que se mantém na ativa até hoje. Ainda assim, lá pelos idos de 2009, 2007, escreveu, não leu, tinha peça sobre ditadura nos teatros, festivais, saraus.
Não sei te dizer exatamente o porque. Só sei que tinha. Um monte. Todas muito parecidas entre si: um aceno a Brecht numa cena aqui, um (pretenso) hiperrealismo acolá, umas armas de plástico surgiriam em alguma hora, dava pra fazer um checklist das coisas que se repetiam.
A questão é que era uma droga.
Não pela investigação conjunta do tema e do período , fundamentais para que entendamos o momento em que vivemos atualmente, mas pela redundância das conclusões e da estética. Era como ver a mesma peça de novo e de novo, chegando sempre nos mesmos lugares, sem nunca apresentar nada além daquilo que já foi visto antes. Se você costuma frequentar a cena teatral de SP, já deve ter se deparado com isso: o mesmo assunto sendo abordado de modo muito similar por diversos coletivos.
Isso é necessariamente errado? Não. É chato pra caralho? Opa se é.
O que mais me interessa em Roda Morta, do Teatro do Perverto, é o olhar pouco convencional que é lançado sobre um período histórico bastante revisitado (de novo, merecida e necessariamente). Na abordagem da companhia, presente e passado se intercruzam de modo satírico e farsesco, pegando influências do Teatro do Absurdo e da Crueldade para refletir sobre as bizarrices, os paradoxos e os despropósitos não só da história recente do país, mas das pessoas que vivem nele — e ora operam na manutenção destes absurdos, ora reagem a eles, criando novos, mantendo a cadeia de eventos sempre em movimento.
Ao levar à cena passagens históricas reimaginadas, passadas pelo filtro da farsa (quaaaaaaase da ridicularia), a companhia não diminui o peso da história, ou a violência brutal do período mas, ao contrário, potencializa isso de um modo que o realismo não daria conta. Ao encontrar momentos de humor, ela não alivia a tensão, mas usa o riso como ferramenta para mostrar o ridículo das situações e daí provoca pena, compaixão, raiva, desgosto. Vale elogiar não só a dramaturgia e a direção, que criam a estrutura para que os efeitos desejados aconteçam (e acontecem), mas também o bom elenco que não pesa a mão no caricatural e que parte do patético sem ficar limitado ao patético, conseguindo, cada um a sua maneira, dar textura e camadas às suas performances (sobretudo Ines Bushatsky e Mariana Marinho, particularmente boas na sessão que eu assisti).
Talvez existam aqui e ali escolhas das quais eu discorde, momentos que eu penso que poderiam ser diferentes, sobretudo no final do espetáculo, quando tudo assume um ar meio melancólico, meio poético (dois personagens olhando para frente, contemplando seus futuros, dizendo coisas como “nunca mais eu vou fazer aniversário”, “eu vou passar vinte anos em silêncio”)… eu entendo as metáforas, entendo os acenos à história atual, entendo as críticas feitas — os vinte anos em silêncio têm mais a ver com os mecanismos de transparência/obscurantismo e de acesso à informação do que com lirismo e realismo fantástico, eu sei — mas sinto falta do tom de pesadelo febril, da tosqueira, daquela coisa meio filme do John Waters que colore outras partes de Roda Morta e que, na minha opinião, é mais interessante. Mas é uma percepção minha, só minha, e não um demérito da montagem.
Ainda assim, Roda Morta é um excelente modo de olhar o passado e o presente e os absurdos pelos quais passamos nos últimos anos — e talvez pelos quais vamos passar no futuro próximo. Também é, em alguma medida, a possibilidade de olharmos todas as farsas que permeiam o sistema atual sobre o qual construímos nossa recente democracia. É uma bad trip. Mas uma bad trip bem boa.
RODA MORTA
Texto: João Mostazo
Direção: Clayton Mariano
Atuação: Biagio Pecorelli, Felipe Carvalho, Ines Bushatsky, Mariana Marinho, Pedro Massuela
Direção de Arte: Lidia Ganhito e Maria Rosalem
Direção Musical: Gabriel Edé
Cenografia: Fernando Passetti
Produção Artística: Lidia Ganhito e Maria Rosalem
Produção Executiva: Gilberto Ferreira e João Mostazo
Assessoria de Imprensa: Márcia Marques — Canal Aberto
Realização: Cia. Teatro do Perverto
Serviço
De 24 de janeiro a 03 de fevereiro de 2019
Quinta a sábado, às 21h e domingos, às 20h
Onde: TUSP | Centro Universitário Maria Antônia | sala Multiuso
R. Maria Antônia, 294, Vila Buarque
Quanto: R$ 30 (R$15 meia) — 70 lugares (venda na bilheteria, no dia da apresentação, e online antecipada no sute www.sympla.com)
De 07 a 23 de fevereiro de 2019
Quinta a sábado, 21h
Onde: Teatro Pequeno Ato — R. Dr. Teodoro Baima, 78, Vila Buarque
Quanto: R$ 40 (R$ 20 meia) — 40 lugares (venda na bilheteria, no dia da apresentação, e online antecipada no site sympla.com.br)
Duração: 70 min. | Classificação: 16 anos.