Sobre “Por Um Pingo”
Em sua série Infamous Hidden Houses, o artista cubano Carlos Garaicoa retrata casas que ficaram famosas por seus habitantes criminosos: empresários envolvidos em esquemas de corrupção, fraudadores do mercado financeiro, terroristas e sequestradores. Sua reflexão é simples e direta: em grandes centros urbanos, é muito provável (corriqueiro?) que você cruze com pessoas monstruosas em seu caminho.
Olhe pela janela da sua casa.
Quão bem você conhece seus vizinhos?
Quão bem seus vizinhos te conhecem?
Isso te tranquiliza ou preocupa?
Quão só você está no meio da cidade? É possível estar só numa cidade grande? É possível se conectar com seus vizinhos, criar uma comunidade, estar plenamente em segurança?
Em certa medida, Por Um Pingo , do Manás Laboratório de Dramaturgia trata de temas similares. Está em cena a cidade como território hostil, o outro como potencial inimigo, o isolamento como estratégia de segurança que só leva à desconexão da comunidade e ao aumento dos riscos e da paranoia — a câmara de ecos eternamente retroalimentada: vemos o outro como um risco, então nos isolamos e o isolamento nos faz a ver o outro como um risco, então nos isolamos e o isolame…
Se os monstros de Garaicoa são pessoas do quilate de Josef Fritzel ou dos Madoff, no texto de Dante Passarelli, que também co-dirige a encenação junto com Fernanda Zancopé, os protagonistas são um casal burguês às voltas com a venda de seu apartamento, num bairro às vésperas da ruína ou da gentrificação.
Neste cenário, tudo é um risco à espreita: a vizinha de cima, a vizinha de baixo, o prédio à frente, os prestadores de serviço, a portaria. Tudo é digno de medo e de ódio, estão ambos acuados e rosnando para tudo — inclusive para a própria sombra.
A burguesia, encastelada em seus privilégios, é uma predadora míope, incapaz de ver com nitidez a cidade que ela devora (e que talvez esteja prestes a morder de volta).
Lentamente, no tabuleiro proposto por Passarelli e Zamcopé, algo se anuncia no horizonte, algum confronto inevitável, ou a onda de choque de algo que aconteceu há tempos: há uma geração atrás, ou em 08 de janeiro de 2023, ou em 09 de outubro de 2018, ou em 31 de agosto de 2016, ou em… enfim, ondas e ondas de horror que vem e erodem a fundação e infiltram o prédio-bunker. Como num filme de Hitchcock, sabe-se que a bomba está para estourar, só não se sabe quem será pego no raio da explosão.
É interessante notar a interseção de teatro e audiovisual proposta na encenação. Há muito de Hitchcock (o uso do suspense, e algo de Janela Indiscreta), muito de Polanski (O Bebê de Rosemary), alguma coisa à la Dario Argento (o Suspiria dos anos 70, com as luzes impossíveis e a arquitetura nauseante), outro tanto Walter Salles (Água Negra), talvez um Aronofsky (Mãe!).
Não à toa, filmes de horror; não à toa, filmes que se passam em casa (ou cuja casa é um personagem em si mesma).
A literatura e o cinema de horror usam a casa como um dos seus principais tropos desde, pelo menos, o século XVIII. Sejam as casas mal-assombradas da literatura gótica, que desafiam a ideia da paz eterna após a morte; sejam as casas mal-assombradas dos filmes dos anos 1970, que comentam a crise econômica norte-americana (repare: nos filmes do período, a família se vê presa ao imóvel justamente porque gastou todas suas economias na hipoteca e não pode mudar de lá, independentemente das entidades que a cercam — o mercado é sempre o pior demônio); sejam nos filmes de invasão do ano 2000, depois que o 11 de setembro reavivou a sensação de insegurança doméstica dos EUA; a casa é sempre esse lugar onde nossa segurança e nossos medos coabitam: às vezes santuário, às vezes prisão, às vezes território a ser protegido ou reconquistado.
A casa (ou o aparamento/condomínio, mais precisamente) tem aparecido recorrentemente no teatro recente também: Por Um Pingo, Condomínio Tropical, O Que Fizemos Foi Ficar Lá Ou Algo Assim , todas comentam, à sua maneira, a polarização e as questões de classe, raça, gênero e sexualidade que costumaram aparecer em cena pós 2013.
A casa e o entorno são um campo minado: há sempre algum vizinho, sempre um “outro” ameaçando a propriedade, a integridade e o medo (ou o ódio vestido de medo) valida a barbárie. E há sempre a resistência vindo do outro lado.
A pergunta permanece: Quão bem você conhece seus vizinhos? Quão bem seus vizinhos te conhecem? Quão só você está no meio da cidade? Você se sente em segurança em casa? O que você acha que isso diz a seu respeito?
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado
Por Um Pingo
Até 28/07
Qui a sáb, 21h; dom, 19h
Grátis
Teatro Arthur Azevedo — Av. Paes de Barros, 955 — Alto da Mooca, São Paulo
Dramaturgia — Dante Passarelli. Direção Geral — Dante Passarelli e Fernanda Zancopé. Elenco — Ana Paula Lopez, Cris Lozano, Diego Chilio e Fernando Aveiro. Trilha Sonora — Ale Martins. Cenografia — Julio Dojcsar. Desenho de Luz — Aline Santini. Figurino — Silvana Marcondes. Orientação em Técnicas de Circo-Teatro — Fernando Neves. Desenho de Vídeo — Marcelo Moraes. Cenotécnicos — Fernando Lemos (Zito) e Michel Gonzalez. Preparação Corporal — Marcus Moreno. Assistente de Figurino — Rud Fiamini. Assistente de Iluminação — Claudio Gutierres. Operação de Luz — Marina Gatti. Operação de Som — Ale Martins e Gabriel Bessa. Operação de Vídeo — Gabriel Bessa. Costureira — Daniela Leóz. Design Gráfico — Renan Suto. Fotos e Vídeo — Jamil Kubruk. Assessoria de Imprensa — Nossa Senhora da Pauta. Marketing Digital — Platea Comunicação e Arte. Produção — Anayan Moretto. Produção Executiva — Marcelo Leão. Realização — Manás Laboratório de Dramaturgia, Cooperativa Paulista de Teatro, Prêmio Zé Renato e Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.