Sobre “Passarinho”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readFeb 21, 2020

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Em Seasons of Love , carro-chefe de Rent, seu maior musical, Jonathan Larson pergunta qual é a métrica ideal para se medir um ano: em minutos ou em horas ou em xícaras de café ou em brigas ou, talvez, em amor. Em Passarinho, solo um tico biográfico e outro tico ficcional, Ana Kutner segue caminho semelhante, falando do afeto que ora é bússola para nossos voos e ora é remédio para a epidemia de solidão e afastamento no mundo contemporâneo.

É interessante perceber que, na dramaturgia de Kutner, as passagens verídicas e ficcionais se misturam, se borrando e se confundindo, de tal modo que a distinção entre os dois é irrelevante: tudo é ficção, posto que passa pelo filtro da dramaturgia e da encenação e tudo é realidade dentro do campo simbólico do teatro.

De certo modo, pode-se falar o mesmo das nossas próprias lembranças (e, por extensão, da nossa identidade): quando nos recordamos de um fato, existem lacunas que a memória por si só não consegue dar conta e que são preenchidas pela imaginação, pela suposição, pela impressão e pelo afeto da pessoa que recorda. Nossa memória (e nossa identidade, em algum grau) é também um tico realidade e outro tico ficção.

O filtro que Kutner usa para revisitar sua vida e inventar vidas outras é o afeto. Memórias valiosas dos primeiros anos da vida adulta se misturam a histórias de amor (romântico ou não) e a vidas que poderiam vir a ser, a identidades que podem surgir desafiando o status quo, a good e a bad vibes, a momentos de comunhão e de total solidão, criando uma mandala sobre a vida e seus atravessamentos.

Embora interessante no macro e na disposição de falar sobre tantos assuntos, fiquei com a impressão de que as vezes é fácil se perder no vem e vai de tempos, espaços, personagens e passagens proposto pela dramaturgia. Quase como se a tapeçaria, que em certos momentos é muito precisa, desse uma emaranhada aqui e ali, criando uns nós em lugares que poderiam ser mais fluidos.

Fiquei com a mesma impressão, em alguns momentos, sobre o ritmo da peça (ou, pelo menos, da sessão que eu vi ): algumas passagens dão uma atravancada, como por exemplo no coro de Sampa. Aliás, é até meio curioso (e paradoxal): eu adoro essa proposta de cena, mas ao mesmo tempo, acho que gera uma barriga meio chatinha. O resultado, o coro em si, é bem bonito, mas até chegar lá passamos por um processo [passa papel, lembra a música, conversa com a atriz, tira dúvida, entende tudo, começa a cantar] que dá uma esfriada no todo. Estou dizendo que a cena ou a proposta são ruins? Não. Estou dizendo que a proposta é realmente boa, mas tenho a impressão de que ela ainda não está na sua melhor forma e que se atriz e diretora quiserem mantê-la nesse ou em futuros trabalhos (e tomara que queiram), vale muito a pena investigar e lapidar isso um pouco, pra ver de quais formas pode-se propor essa quebra de dinâmica sem que o ritmo seja comprometido. Se conseguirem equacionar isso, acho que vai ficar ótimo.

Mas a dramaturgia e a direção (de Clara Kutner) têm outras sacadas que eu acho ótimas. A cena do Bowie eu acho linda — aliás, queria conversar sobre o uso das gelatinas nessa cena: se você já viu [ou se for ver], me conta o que achou disso? — e bastante poética. O mesmo vale pra disposição das luzes no palco e seu uso, servindo tanto para demarcar espaços quanto para criar, de um jeito bem inventivo, atmosferas e evocar imagens. Gosto tanto da estética quanto da proposta de ser a própria atriz quem opera as luzes, subindo e descendo dimmers, iluminando e escurecendo áreas, à medida que narra alguma história, como se decidisse sobre quais narrativas quer jogar luz,quais coisas podem ser lembradas ou esquecidas, e em quais momentos — e isso pode ser uma ótima metáfora sobre autoficção. Fiquei brisando um tempão sobre isso.

Saí de Passarinho com muito mais hipóteses do que certezas (e, na real, isso é até um dos prazeres que eu tive no espetáculo), não é à toa que eu demorei tanto pra escrever sobre. Talvez valha a pena ler o texto da peça depois de assistir ao espetáculo (tá à venda na porta do teatro), pra ver o que surge e o que some na ida da página ao palco (e faço essa publi aqui de graça, só porque acho que esse pode ser mesmo um exercício interessante — mas, anunciantes, se quiserem me pagar pra fazer jabá, sintam-se à vontade). E com certeza vale a pena ir ver com alguém, pra depois discutir sobre a peça tomando um vinho e ouvindo um Bowie e falando da vida e dos amores e das boas lembranças. Sei lá. Se fizer alguma dessas coisas, me conta depois como foi.

PASSARINHO - De 6 de fevereiro a 26 de março, quintas, às 20 horas, no Teatro Eva Herz (** Dia 27 de fevereiro não haverá espetáculo).

Duração: 60 minutos.

Classificação etária: 16 anos.

Ficha Técnica
Texto e Atuação: Ana Kutner
Direção: Clara Kutner
Figurino: Antonio Medeiros e Guilherme Kato

Fotos: Felipe Lima
Produção: Ana Kutner e Juliana Mattar

Realização: AKutner Produções

Teatro Eva Herz: Av. Paulista, 2073 - Conjunto Nacional.

Assessoria de imprensa

Vanessa Fontes

contato@vanessafontes.com.br

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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