Sobre “Pandas ou Era Uma Vez em Frankfurt”

Tudo, Menos Uma Crítica
7 min readMay 16, 2020

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Olá, pessoa que eventualmente lê isso aqui. Tudo bem por aí? Como anda a vida? Tem ficado em casa, usado máscara, respeitado o isolamento social, lavado bem as compras do mercado? Que bom.

Bom, pois é, a essa altura do campeonato já deve estar claro por aí que coisa pra caramba já mudou nesses últimos dois meses de crise. Algumas, temporariamente; outras, provavelmente, mudarão mais definitivamente: de profissões a hábitos, muita coisa será reconsiderada e reconfigurada para esses novos tempos e para aquilo que já é chamado por futurólogos de “o novo normal”.

Das coisas que têm surgido neste momento tão peculiar que estamos vivendo, as ações criativas mediadas por/surgidas a partir de tecnologias apropriadas de seus fins originais e ressignificadas têm me chamado bastante atenção. Desde leituras dramáticas ou monólogos apresentados via lives de Instagram a experiências multiplataformas como Tudo O Que Coube Numa VHS, do Magiluth, diferentes ações poéticas têm investigado os limites e as potencialidades dessas mídias com maior ou menor inventividade e sofisticação. Soma-se a este grupo de investigadores a equipe de Pandas, ou Era Uma Vez em Frankfurt, que estreou sexta, dia 15, após alguns ensaios abertos, e que é um dos primeiros espetáculos (?) a ser planejado especificamente para o aplicativo de videoconferência Zoom.

O (?) do parágrafo anterior, obviamente, não se refere à qualidade de Pandas, mas às questões de fruição e de nomenclatura que surgem a partir de um experimento artístico que quebra com as convenções que conhecíamos e sobre as quais nos apoiávamos.

Se você tem Facebook, deve ter acompanhado debates bastante acalorados sobre se teatro online é ou não teatro. Da mesma forma, discute-se se estas iniciativas sequer deveriam acontecer, bem como as implicações éticas inerentes à prática ou não destas ações criativas. O debate é complexo, extenso, e não cabe num único texto — mas eu recomendo fortemente que você o acompanhe; aliás, o que você pensa sobre isso? Gostaria mesmo de saber sua opinião sobre o tema, então conta aí.

O que posso dizer, de minha parte, é que eu ando fascinado com as possibilidades de fruição dessa nova linguagem e as convenções e etiquetas que surgem delas. Elas são um desafio para os artistas que decidem abrir esses novos caminhos , para o público que quer ter contato com estes novos trabalhos e para nós, que escrevemos sobre isso — veja, eu sei escrever sobre teatro, faço isso há anos, mas eu será que eu sei escrever sobre uma experiência teatral online ao vivo? Descobriremos em breve.

Bom, tudo isso posto, vamos falar sobre os pandas.

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Experiência teatral online ao vivo, aliás, é o modo como a equipe decidiu batizar esta adaptação da peça História do Urso Panda (contada por um saxofonista que tem uma namorada em Frankfurt) do romeno Matei Visniec. De todos os pontos positivos do trabalho, talvez esse seja o mais significativo: o recorte proposto é claro, não se trata de uma tentativa de emular o teatro mas sim de encontrar as possibilidades poéticas de um dado aplicativo. Isso ajuda tanto a ajustar as expectativas de quem cogita assistir quanto delimita o terreno que equipe criadora e espectadores vão percorrer juntos.

Tendo sido projetado especificamente para o Zoom, Pandas, ou Era Uma Vez Em Frankfurt sai-se melhor do que quem simplesmente tentou transportar material cênico para as lives sem considerar muito bem as tecnologias e o que elas oferecem de ônus e bônus. Por ser um texto absurdo, que discute questões como presença, corporeidade, lugar versus não-lugar e morte, Pandas tira vantagem do estranhamento que é assistir a uma performance via tela do computador. Quando algum dos personagens fala nós não estamos em lugar nenhum ou eu estou com você ou onde você está?, meio e mensagem convergem: nós estamos e não estamos juntos, nós de fato compartilhamos deste lugar virtual instaurado quando se abre uma sala do Zoom ao mesmo tempo que não compartilhamos, fisicamente, o mesmo lugar.

O modo como as telas se dividem também ajuda na fluidez e de novo encenação e plataforma negociam bem suas necessidades e capacidades: como trata-se da história de duas pessoas conversando entre si, a tela dividida exibindo os rostos de Nicole Cordery (talentosa nos palcos e bastante desenvolta nesta nova proposta; vale prestar atenção no modo como ela transita entre o humor ferino e a delicadeza ao longo da sessão, garantindo que sua atuação seja outro dos pontos fortes de Pandas) e Mauro Schames dá conta do recado. Cabe apontar também que, lá pelo final, quando fecham a câmera de Mauro e Nicole fica sozinha na tela, de certa maneira o espectador também compartilha da sensação de confusão e isolamento da personagem — uma sacada simples, mas eficiente.

Pandas é, como é de se esperar, uma produção simples, caseira, com pouquíssimos recursos. Um figurino preto básico, objetos contrarregrados, uma parede neutra e praticamente só. O pulo do gato, me parece, é como a direção de Bruno Kott se beneficia desses poucos elementos disponíveis fisicamente aos atores e os alia aos recursos disponíveis na plataforma virtual, como a tela dividida já citada ou a possibilidade de projetar nas paredes neutras fundos pré-selecionados. Existe algo de muito interessante, na minha leitura, no modo como as imagens vão surgindo atrás dos atores, algumas vezes situando-os diretamente em algum lugar ou ilustrando alguma fala (a cena em que eles percebem os outros moradores do prédio e “observam” as janelas), outras vezes descolando-se do sentido imediato do que é dito e propondo uma paisagem interna, simbólica (a cena do apanhador de borboletas, por exemplo). O exercício de relacionar o fundo com a ação dos atores me foi bastante instigante e se assemelhou, em algum grau, à proposta de Midnigh Gospel, série animada recém estreada da Netflix e que também alia e desalia e realia imagem e fala.

Outra coisa interessante de se perceber é que existe uma tosquice inerente a estes fundos mal recortados e em alguns momentos defeituosos. Digo aqui tosquice não como juízo de valor, mas sim como estética. Parece os programas da MTV da década de 2000, em alguns momentos, algo de baixíssimo orçamento e sem recursos muito sofisticados, mas que sabe que é assim. Para mim, foi algo que contribuiu à experiência, porque não só intensificou o clima absurdo proposto por Visniec como também deu aos personagens um quê tosco, tornou a situação em que eles estão inseridos ainda mais pobre, ridícula. De algum modo, torna tudo tragicômico, nos faz nos apiedarmos dessas figuras ridículas mergulhadas nesse contexto estranho, desolador e desolado. De novo, me parece que meio e mensagem convergem: a precariedade da plataforma potencializando a precariedade em que vivem os personagens.

Claro, Pandas tem seus soluços aqui e ali. É de se esperar, afinal estamos todos descobrindo como fazer/como assistir à medida que as coisas estão sendo feitas/assistidas. De fato, o caminho se faz ao caminhar. Mas o fato de uma ou outra vez a coisa perder o fôlego (ora é o delay da conexão que prejudica a experiência, ora alguma solução encontrada pela equipe ainda não parece a mais adequada à plataforma, ora é a própria plataforma que não está à altura e ainda não consegue garantir a melhor experiência possível, ora talvez seja simplesmente gosto pessoal meu que não esteve alinhado em algumas passagens com as escolhas dos criadores) não tira os méritos de Pandas ou seu potencial desbravador — só o fato de estarmos discutindo estética, técnica, tecnologia e potencial poético de obras inéditas atualmente já é muito legal. E a ideia de que talvez uma nova vertente artística possa vir a surgir dessas iniciativas é muito refrescante e estimulante, bem como levará tempo até percebemos todas as perguntas que surgirão desse movimento (caso ele continue) e levará muito mais tempo até termos algumas respostas — por ora, fico apenas tateando questões de fruição do fenômeno (como se define se uma live ou uma experiência no Whatsapp foi boa? A partir de quais parâmetros? Comparado a quê? Quais coisas surgem nestas plataformas que só surgem nestas plataformas, como provocá-las e como percebê-las? Como se registrar isso? Como escrever sobre isso? Quais termos usar, espetáculo, sessão, encenação, todos estes termos são válidos?) e das convenções (quais códigos vão surgir destas iniciativas? o que será considerado falta de educação e o que é necessário possuir de conhecimento técnico para assistir a algo?), mas existem outros papos que refletem também sobre a ética deste tipo de iniciativa. Recomendo que acompanhemos os debates.

De todo modo, Pandas tem méritos próprios e se torna ainda mais especial no contexto em que está inserido, pelas questões que ajuda a levantar e pelos caminhos que aponta, junto com outras iniciativas cênico-virtuais que andam aparecendo por aí. Só por isso, já merece uma conferida atenta.

Ficha técnica

Texto: Matéi Visniec
Direção e dramaturgismo: Bruno Kott
Elenco: Mauro Schames e Nicole Cordery

Serviço
15 de maio a 6 de junho de 2020
Sextas e sábados às 20h
Na Plataforma Zoom (Para assistir à experiência, é necessário baixar o aplicativo Zoom no seu computador. Depois, é só reservar o seu ingresso pelo Sympla e seguir as instruções).
Ingressos: Pague Quanto Puder (a renda será destinada ao Fundo Marlene Colé), via Sympla.
Duração: 40 minutos
Classificação indicativa: 14 anos

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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