Sobre “O vão entre o trem e a plataforma”
Nós somos formados de átomos.
O teclado em que eu escrevo isso, a mesa onde o teclado está apoiado, os dedos que eu uso para digitar, ou a mão que você está usando para dar scroll na sua tela. Tudo átomos.
Os átomos são compostos de prótons, elétrons, nêutrons (e quarks, mas não entremos nesse assunto agora) e muito, muito espaço vazio. Na verdade, com exceção dos prótons, elétrons e nêutros (e os quarks, mas deixa eles de lado), os átomos são compostos em sua totalidade de espaço vazio.
Todos os átomos que compõem o teclado onde eu escrevo, a mesa onde ele está apoiado, meus dedos, sua mão, são compostos de imensidões de vazio. Ou seja, eu e você e todas as pessoas que já passaram pelas nossas vidas, tudo isso é constituído também de espaços vazios. De vãos.
Então, de um modo muito específico, muito quântico, os átomos do meu dedo não se tocam entre si, nem nunca tocam os átomos do teclado, que também nunca tocam os átomos da mesa. Da mesma forma, de um modo muito específico, muito quântico, eu nunca toquei ou abracei as pessoas que eu já abracei ou toquei. Nem você. Nós apenas lidamos com os vãos entre nós (e os vãos que nos compõem) e eles (e os vãos que os compõem).
Toda essa introdução quântica-metafísica-esotérica pode ser um tipo de prólogo para falarmos do novo trabalho (cheio de prólogos) da Companhia dos Solilóquios, que está em cartaz no Sesc 24 de Maio. O Vão Entre o Trem e a Plataforma é uma peça sobre o amor, mas não só. Sobre a juventude, mas não só. Sobre a cidade, mas não só. Sobre amar e desamar, encontrar e desencontrar (pessoas, a si mesmo, a própria juventude) numa cidade que nem é jovem, nem é amorosa, como São Paulo.
Cruzando as linhas do transporte ferroviário às linhas do destino, pensando o multiverso como metáfora para o querer, o platônico e o potencial, O Vão Entre o Trem e a Plataforma é sobre as pessoas, essas partículas que formam as cidades, e o espaço vazio entre elas — mesmo espremidas na Sé às 18h ou arrastadas na baldeação entre a Consolação e a Paulista, há sempre um vazio entre cada uma.
Há sempre um pouco de solidão na multidão, há sempre algo na pessoa amada que é fugidio, inescrutável, insuspeito, e também há sempre aquele algo que é nosso que ninguém nunca verá, nunca tocará, do qual nunca saberá. Há sempre um vazio em nós que às vezes pode ser sincronizado com o vazio de outra pessoa, preenchido com histórias, músicas, risos, experiências, glitter, sobretudo vermelho e sofá verde-menta, e às vezes o vazio deixa de ser um vazio inabitável pra se tornar um espaço potencial de onde tudo pode surgir. Ou às vezes o vazio se torna mais e mais vazio, até ser intransponível, até sermos incapazes de ver o que há do outro lado.
Há muito desse movimento de aproximação e afastamento, atração e repulsa na história da(s) persona(s) contada pela Companhia dos Solilóquios. O afastamento da infância, o afastamento de antigas relações, e com esse afastamento, a aproximação de novos lugares, pessoas, experiências.
E nesse movimento contínuo, certa melancolia, certa realização de que nunca mais poderemos voltar ao local de onde viemos: o quarto da infância é sempre muito pequeno quando voltamos a ele adultos; e o nosso amor dos tempos de colégio é uma pessoa completamente nova quando nos reencontramos aos 30 anos (ainda que ressurja o amor deste encontro, é sempre o encontro de dois quase estanhos, com uma vaga sensação mútua de reconhecimento e de diminuição da distância entre ambos.).
E há também essa noção de escala em relação à cidade, em relação ao acaso ou em relação ao destino. Somos tão pequenos em relação a São Paulo, à sua efervescência, à sua pulsão, ao seu ritmo incansável, ao seu ritmo acelerado, à sua brutalidade, à sua insensibilidade, à sua impiedade em relação a quem mora nela, muito pequenos em relação ao vazio que nos cerca, ao barulho que nos cerca. E somos tão pequenos em relação ao acaso, que nos atira de lado a lado por pura aleatoriedade, ou em relação ao destino, que nos atira de lado a lado com completo propósito, mas que não deixa de nos atirar do mesmo jeito.
Há muita beleza em relação a tudo isso, e há muito horror em relação a tudo isso. E nada mais adulto do que a realização de que é possível ver o horror e a beleza numa mesma coisa.
Nesta abordagem melancólica sobre o amor, a Companhia dos Solilóquios reflete sobre o tempo e, também, sobre o tempo que levamos para nos deslocar — não só do ponto A ao ponto B geograficamente, mas de quem fomos para quem estamos para quem seremos.
A vida, afinal, é transitória e é fluxo — tudo sempre se desloca, tudo sempre muda, assim como os átomos que te compõem compunham outras coisas antes de você, e comporão outras quando você se for.
Há muito vazio ao redor de nós. E há muito movimento, também. Há caos e talvez haja desígnio também. Assim como nas cidades. Assim como no amor.
O Vão Entre o Trem e a Plataforma
da Companhia dos Solilóquios
Até 27 de abril. Qui a sáb, às 18h
Sesc 24 de Maio — Rua 24 de Maio, 109 — República, São Paulo — SP
Dramaturgia: Bruna Vilaça. Direção e Concepção de Cenografia: Julia Correa e Mayara Constantino. Elenco: Bruna Vilaça, Daniela Carinhanha, Felipe Herculano, Santiago Acosta Cis e Weslley Nascimento. Figurinos: Bruna Vilaça e Wallace Fiel. Cenotécnico: Ivanildo Alceu. Sonoplastia e Operação de Som: Aghata. Desenho de Luz: Andreza Dias e Weslley Nascimento. Operação de Luz: Andreza Dias. Foto Still: Rayssa Zago. Fotos de Estreia: Rafael Sá. Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini. Produção Executiva: Weslley Nascimento. Assistente de Produção: Julia Iwanaga. Realização: SESC-SP e Companhia dos Solilóquios
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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