Sobre o musical “Billy Elliot”

Tudo, Menos Uma Crítica
6 min readMar 12, 2019

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Um dos embates mais importantes da Inglaterra da década de 1980 foi aquele travado entre Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, e o sindicato dos mineradores ingleses, que declarou greve nacional na busca de melhores condições trabalhistas. Pressionados pelas políticas da Dama de Ferro e retratados nem sempre de forma lisonjeira pela mídia, os mineiros mantiveram-se em greve por um ano (recebendo apoio de grupos LGBT em algumas ocasiões, evento que por sua vez fortaleceria passeatas pró-direitos igualitários nos anos seguintes), até que os sindicatos precisaram recuar e suspender as manifestações que tentavam barrar o fechamento e a privatização de minas por todo o território nacional.

Este é o pano de fundo de Billy Elliot, musical que estreia na sexta (15) no Teatro Alfa, baseado no filme homônimo dos anos 2000. Em cena, a descoberta da paixão de Billy, um garoto de onze anos, pelo balé, e os conflitos que isso gera em sua família e comunidade — mineiros brutos, mais preocupados na urgência de lutar por seus empregos (objetivamente) e na manutenção da masculinidade heteronormativa (subjetivamente).

Assim, a dramaturgia de Billy Elliot apela para diversas frentes: temos a jornada do herói clássica (podemos ver claramente suas etapas, como o chamado à aventura; a presença do mentor; a travessia do limiar e subsequente transformação do herói; a morte e renascimento…), que seduz pela estrutura narrativa familiar e comprovadamente eficiente; temos a história de um artista que se apaixona pela arte; temos a história de um garoto órfão de mãe que descobre uma nova figura materna que lhe apresenta a uma nova vida depois de um período de gestação (os ensaios); temos o comentário social sobre as questões do proletário; temos o comentário social sobre a homofobia, a heteronormatividade, o papel de gêneros, o descrédito em relação às artes e a dificuldade em mudar esses padrões hegemônicos. É fácil, portanto, se conectar em alguma medida com as propostas da dramaturgia, seja num nível mais emocional, seja em algum outro nível de maior engajamento crítico.

Se é redundante falar do primor técnico do espetáculo (o cenário é incrível, a luz é incrível, os efeitos são incríveis, as cenas de dança são incríveis), cabe apontar o que surtiu maior efeito na sessão que eu assisti, no dia 11. O musical apresenta momentos deslumbrantes e bastante delicados — a dança entre Billy criança e adulto e o vôo, bastante sutil e eficiente — e outros declaradamente campy — a dança de Billy e Michael com os vestidos — além de passagens que fazem jus à grandiloquência da Broadway — os sapateados e cenas de coro. Em todos esses estágios, a encenação é eficaz e provoca a sensação de deslumbre necessária nesse tipo de espetáculo.

Billy Elliot ganha ainda mais potência onde esses números ganham estofo social ou crítico, como na sobreposição de cenas de protestos e de aulas de dança. A cena funciona em diversas instâncias: traça paralelo da evolução técnica de Billy enquanto a tensão nas ruas também progride; cria contrastes entre a delicadeza do balé e a violência dos confrontos sociais / a leveza da infância e a brutalidade do mundo adulto; coloca em debate diversas camadas da sociedade: professores, artistas, operários, policiais, políticos.

É, sem dúvida, a melhor cena do espetáculo justamente por ser tecnicamente impecável (todos dançam soberbamente uma coreografia muito complexa) e por sintetizar de modo imagético, não só discursivo, diversos assuntos caros à peça.

Por outro lado, se o musical apresenta cenas desse quilate, por comparação as cenas que ainda estão menos azeitadas parecem ainda mais frágeis. Na sessão que eu assisti, a cena em que a professora Wilkinson confronta o pai e irmão de Billy sobre as aulas de dança (justamente uma das de maior tensão emocional no espetáculo) ficou aquém de onde poderia ter chegado.

Um pouco de overacting e um pouco de falta de escuta dos atores diluiu a tensão do momento. Não que eu esteja pedindo Stanislavski num musical desse porte, não é isso. Nem estou falando que a cena em si é ruim. Mas dá pra perceber que tem margem para melhora, e se o elenco é tão bom assim, é difícil aceitar cenas que sejam menos do que muito boas — especialmente porque quando eles são bons, eles são do caramba. Enfim, assisti a sessão antes da estreia oficial, então é claro que o musical vai crescer ao longo do tempo. Mas essa é uma cena na qual eu ficaria de olho.

Ainda falando do elenco, vale a pena sinalizar os pontos altos de um coletivo já bastante sólido: todos os bailarinos são incríveis, isso já é um dado, e o coro é bastante eficiente, mas Vanessa Costa, no papel da professora de balé, é um dos pilares do todo. Dançando pra caramba e conseguindo mesclar doçura, dureza e humor, Costa é um bom ponto de investimento emocional da platéia — assim como é a sra. Wilkinson que apresenta uma alternativa de vida a Billy, é Costa quem oferece à platéia alguns dos momentos mais poderosos emocionalmente. Beto Sargentelli, figura conhecida do teatro musical, aparece forte como sempre e se sai melhor no segundo ato, quando seu personagem apresenta maiores contrastes (o orgulho pelo irmão, a amargura da derrota, a desesperança pela ausência de alternativas de vida), nos quais ele pode apostar ainda mais ao longo da temporada. De voz poderosa e imenso carisma, Marcelo Góes cativa quando aparece e faz falta quando não está em cena.

E, obviamente, as crianças apresentam um domínio técnico invejável, sobretudo os intérpretes de Billy e Michael (Na sessão que eu assisti, respectivamente: Tiago Fernandes e Paulo Gomes).

Por fim, vale ressaltar as possibilidades de discussões políticas que esta montagem suscita no Brasil de agora. Desde a relevância da arte para o indivíduo e para a sociedade até a situação de afogamento da classe trabalhadora num país com economia em crise, passando por machismo, homofobia e questões de gênero. O elenco parece consciente de pelo menos algumas destas questões, dadas as falas no início e final da sessão sobre a importância de leis de incentivo à cultura. Cabe agora deixar a temporada rolar para ver como a platéia responderá a essas colocações.

BILLY ELLIOT O MUSICAL
De 15/03 a 30/06. Sextas, 20h30; sábados, 15h e 20h; domingos 14h e 18h30 Teatro Alfa (1.100 lugares) Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722 — Santo Amaro
De R$ 75 a R$ 310

Ficha Técnica

Músicas de Elton John
Letras e Libreto de Lee Hall
Originalmente dirigido por Stephen Daldry
Direção Geral: John Stefaniuk
Versão Brasileira: Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler
Diretor associado: Floriano Nogueira
Diretor Musical: Daniel Rocha
Coreógrafo: Peter Darling
Coreógrafos Internacionais Associados: Barnaby Meredith e Nikki Belsher
Coreógrafa Residente: Anelita Gallo
Cenógrafo: Michael Carnahan
Figurinista: Ligia Rocha e Marco Pacheco
Designer de Luz: Mike Robertson
Designer de Luz Associado: Tom Mulliner
Designer de Som: Gaston Birski
Designer de Som Associado: Alejandro Zambrano
Visagista: Cabral
Produtora de Elenco: Marcela Altberg
Produtores Associados: Cleto Baccic, Carlos A. Cavalcanti e Vinícius Munhoz
Apresentado por: Ministério da Cidadania e Brasilprev
Patrocínio: Alelo, Furnas e Vivo
Apoio: Boa Vista
Hotelaria Oficial: Radisson Paulista e Vila Olímpia
Realização: Atelier de Cultura e Governo Federal

Elenco:
RICHARD MARQUES, PEDRO SOUSA e TIAGO FERNANDES Billy Elliot
CARMO DALLA VECCHIA Jackie
BETO SARGENTELLI Tony
VANESSA COSTA Mrs. Wilkinson
SARA SARRES Mãe
INÁ DE CARVALHO Avó
ANDRÉ LUIZ ODIN Mr. Braithwaite
MARCELO NOGUEIRA George
MARCELO GÓES Big Daves

Ensemble
AFONSO MONTEIRO
DINO FERNANDES
FABRÍCIO NEGRI
FERNANDO MARIANNO
GUILHERME PIVETTI
GUSTAVO DELLA
LUCAS CÂNDIDO
OTÁVIO ZOBARAN
RODRIGO GARCIA
SANDRO CONTE
DANILO MARTHO
Swing
VITTOR FERNANDO Swing
CARLA VAZQUEZ
MARISOL MARCONDES
LUCIANA ARTUSI
VANESSA MELLO
CLARTY GALVÃO
Pit Singer
MARI SARAIVA Swing

Crianças
FELIPE COSTA, TAVINHO CANALLE e PAULO GOMES Michael Caffrey
DUDDA ARTESE Alison Summers
ANABÊ DRUMMOND Keeley Gibson
MARIA CLARA MASCELLANI Angela Robson
JÚLIA BERLIM Julie Hope
HELÔ AQUINO Debbie Wilkinson
MILENA BLANK Susan Parks
MEL HENDRIKSEN Tracey Atkinson
LAURA DAGUER Sharon Percy
ANNA BEATRIZ Tina Harmer
ISABELLA DANELUZ Alison Summers
MARTHA NOBEL Keeley Gibson
ANA JULIA SANTANIELLO Angela Robson
THAÍS MORELLO Julie Hope
LUISA BRESSER Debbie Wilkinson
GIGI PATTA Susan Parks
ISA PAGNOTA Tracey Atkinson
GIULIA MATTIELLO Sharon Percy
LIA BOTELHO Tina Harmer

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