Sobre “O Mistério de Irma Vap”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readMay 10, 2019

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Apesar de sua morte precoce, Charles Ludlam teve uma extensa carreira desde o final dos anos 1960, investindo na pesquisa do absurdo, do kitsch e do besteirol — e em alguma extensão, da anarquia.

Dizia ele ter um interesse em, através da mudança de contexto e de estética, ressignificar e revalidar coisas que recebiam menos atenção da sociedade, ou que eram vistas de modo insuficiente (nesse sentido, é interessante ver como o camp foi fagocitado pela sociedade do entretenimento, vide o último Met Gala).

Seu trabalho mais conhecido, O Mistério de Irma Vap já foi encenado aqui pelo menos duas vezes — numa carreira famosa de 1986 a 1997 com Ney Latorraca e Marco Nanini e depois, em 2008, com Marcelo Médici e Cassio Scapin, ambas as montagens sendo dirigidas por Marília Pêra — , fora uma versão para cinema (de 2006), e agora ganha novo corpo a partir da direção de Jorge Farjalla, com Mateus Solano e Luis Miranda.

Escrita em 1984 e com inspiração no penny dreadful inglês (mas também com uma influência do pulp e do cinema B norte americano, em alguma medida) Irma Vap é um terrir que parece um mix entre Agatha Christie e os episódios de mistério do Chapolim. Na trama, Lady Enid, a nova esposa do Lord Montepico, luta para apagar da memória do marido o fantasma de sua ex-esposa, Irma Vap, ao mesmo tempo em que desvenda os mistérios referentes à propriedade dos Montepico e dos funcionários do local — ao mesmo tempo em que esconde os seus próprios.

Sob a direção de Farjalla, a nova Irma Vap se desloca da estética vitoriana e finca os pés nos anos 1980, num caleidoscópio que vai dos filmes trash (a citação imediata é Pague Para Entrar, Reze Para Sair, mas há outras) às Noites do Terror do Playcenter, passando por Thriller do Michael Jackson e pelo Sai de Baixo dos anos 1990. A famosa troca frenética de figurinos é explicitada nesta montagem, acontecendo às vistas do espectador, a fim de potencializar a teatralidade do texto. Se a metalinguagem desvela outras possibilidades da dramaturgia e amplia os campos de fruição, existe uma recorrente quebra de personagens para valorizar a figura dos atores célebres que, se na primeira vez é bastante interessante (e, em certa medida, ajuda a dessacralizar a figura dos globais), lá pela 3ª ou 4ª vira só um artifício esvaziado e quase um fetiche com a figura dos intérpretes. É um problemão? Não. É uma piada que, de tanto ser repetida, perde a graça? Sim.

Mas ainda assim a investigação estética de Farjalla é interessante: o flerte com o parque de diversões parece bastante acertado e fortalece a atmosfera farsesca desejada por Ludlam. Ao mesmo tempo, a opção de incorporar os contrarregras à encenação não só valoriza o trabalho de quatro puta atores ( Fagundes Emanuel, Greco Trevisan, Kauan Scaldelai e Thomas Marcondes, interessantíssimos) como enriquece as paisagens dramatúrgicas. Talvez em alguns momentos as escolhas sejam muito óbvias (precisavam mesmo dançar Michael Jackson?)e talvez alguns personagens se misturem aqui e ali (por exemplo, quem mancava nas primeiras cenas para de mancar lá pelo meio), mas ao mesmo tempo, outras tantas piadas funcionam bastante bem (a plateia sempre vibra nas quebras da quarta parede e nos duplos sentidos), inclusive nas mais arriscadas sobre política.

Misturando entretenimento escapista com algumas alfinetadas sociais e políticas aqui e ali, O Mistério de Irma Vap entrega bem o que promete (humor fácil e elogio aos [bons] intérpretes) ao mesmo tempo em que sustenta as proposições originais de Ludlam.

O Mistério de Irma Vap. Foto: Priscila Prade

FICHA TÉCNICA

Texto: Charles Ludlam. Idealização: Andrea Francez. Direção, encenação e dramaturgia: Jorge Farjalla. Elenco: Luis Miranda, Mateus Solano, Fagundes Emanuel, Greco Trevisan, Kauan Scaldelai e Thomas Marcondes. Traducão: Simone Zucato. Assistente de direção: Raphaela Tafuri. Direção de Produção: Priscila Prade e Marco Griesi. Produção executiva: Daniella Griesi e Fernando Trauer. Direção Musical: Gilson Fukushima. Cenografia: Marco Lima. Iluminação: Cesar Pivetti. Figurinos: Karen Brustolin. Fotografia: Priscila Prade. Comunicação Visual: Kelson Spalato e Murilo Lima.Redes Sociais: Tiago Cunha e Felipe Gonçalves: Mídia: Caio de Jesus. Assessoria Jurídica: Francez e Alonso Advogados. Produção de Elenco: Marcela Altberg. Realização: BricaBraque e TeTo Cultura.

O MISTÉRIO DE IRMA VAP, DE CHARLES LUDLAM

De 12 de abril a 16 de junho no Teatro Porto Seguro

Às sextas-feiras, às 21h, aos sábados, às 18h e 21h, e aos domingos, às 16h e 19h.

Ingressos: Plateia: R$ 150 / Frisas: R$ 100 e / Balcão R$80.

Classificação: 12 anos.

Duração: 100 minutos.

Gênero: Comédia.

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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