Sobre “O Beijo no Asfalto”
Bom, a essa altura do campeonato você já deve saber muito sobre O Beijo no Asfalto, texto clássico de Nelson Rodrigues. E a essa altura do campeonato você também já deve ter ouvido falar um monte sobre a elogiadíssima montagem de O Beijo no Asfalto assinada por Bruno Perillo (com assistência de Fabio Mráz), que segue em cartaz no Núcleo Experimental até quinta (12).
Pois bem, correndo o risco de chover no molhado (quem mandou eu demorar tanto pra ver?), eis aqui alguns pensamentos meus:
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Durante boa parte da sessão que eu assisti, fiquei refletindo sobre a notícia de pouco mais de um mês sobre um homem que levou quatro tiros dentro de um bar depois de beijar outro cara.
Fico com a impressão de que a história seria bem diferente se fosse um cara beijando uma mina. Talvez nem houvesse notícia.
Da mesma forma, O Beijo no Asfalto seria totalmente outra peça caso o beijo em questão fosse entre um cara e uma mina.
Isso me faz pensar, então, como uma peça do início da década de 1960 permanece tão atual. O texto de Nelson Rodrigues gira em torno de homofobia, de abuso de poder, da banalização e relativização da violência, de hipocrisia, do moralismo, de gênero e masculinidade tóxica, do sensacionalismo, da mentira e, em certa medida, de pós-verdade. O Brasil de hoje em dia também tem girado (e convulsionado) ao redor desses tópicos.
Ou seja, o texto do Nelson envelheceu bem.
A gente, nem tanto.
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Tudo bem, vai: sendo bem franco existe uma homofobia latente no texto de Rodrigues (embora os personagens da vizinha, dos colegas de trabalho e do jornalista, entre outros, podem ser vistos como uma crítica ao falso moralismo e à intolerância, é inegável que o personagem do sogro é problemático por reforçar a ideia de que homofóbicos são gays enrustidos e que gays, geralmente solitários e incapazes de lidar com o objeto de seu desejo, são mais propensos à violência, conceitos bastante populares por aqui no século XX) que precisa ser vista com olhos bem críticos. Mesmo quando se pensa que ele foi um homem do seu tempo e que na década de 1960 as coisas meio que eram assim mesmo e tal, ainda é um tópico delicado. E pode ser muito fácil, sob uma direção menos sensível, reforçar esteriótipos perigosos. Por sorte, não é o caso dessa montagem.
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Assim, Perillo escapa bem de duas esparrelas: 1) existe uma porrada de montagens d’O Beijo no Asfalto ; então pra que fazer mais uma? e 2) como dar corpo a um texto potencialmente homofóbico sem ser homofóbico por tabela?
Pois bem: a nova montagem é feliz ao conseguir alinhar o texto a situações urgentes do Brasil contemporâneo — sendo a falência das instituições, o abuso de poder e a manipulação da mídia em função do lucro os temas principais; e a mesquinheza da fofoca, a invasão do privado em função do divertimento público e o papel do homem na sociedade, entre outros, temas periféricos — , oxigenando e dando frescor a um texto de tantas décadas.
O ritmo acelerado da encenação, os gestos grandes e bem desenhados e a atuação que foge do realismo dão à montagem um caráter febril, frenético, como uma bad vibe de cocaína. A partir desse filtro grotesco, de pesadelo, podemos ver com mais atenção o absurdo da situação — como a vida de um homem é destruída por causa de um beijo em outro homem — e do quão desleal, cruel e mesquinho é o todo; da mesma forma, como desleais, cruéis, mesquinhos e surdos são as pessoas que compõem o todo e que silenciam e agridem os outros, seja por ganância, fome de poder, desinformação, medo, cobiça etc.
Ver uma sociedade tão deformada e autofágica surgindo no palco como extrapolação da sociedade que existe fora dele só acentua as críticas tecidas pela direção: quão distantes de fato estamos dos horrores apresentados em cena?
Sobre a estrutura delineada por Perillo, o elenco lapida ainda mais o texto de Rodrigues: conseguem ir alguns tons além do realismo, mas ainda ficando muitos tons distantes da caricatura rasa; conseguem imprimir sutilezas aqui e ali que contrastam bem com o todo acelerado e frenético, como quem usa tons claros como respiro numa tela pintada com cores expressionistas vibrantes — e justamente por isso, dá mais força ao quadro. Angela Ribeiro, Rita Pisano e Natalia Gonsales estavam particularmente bem na sessão que eu assisti: Pisano e Gonsales com uma partitura corporal bem elaborada que ora fortalece e ora contradiz o que é dito, criando harmonias e dissonâncias interessantes (o excesso de inocência que mascara malícia; a fé no parceiro que se transforma lentamente em descrença) e Ribeiro que desenha três personagens distintas, com uma inteligente composição física e vocal e com um senso de humor cáustico que contribui muito para a montagem.
Anderson Negreiros também é muito feliz em mesclar virilidade, inocência e impotência, dando ao seu personagem uma certa carga de tragédia grecocarioca bastante interessante.
Cabe também citar a distribuição do elenco ao redor da cena, ora distribuindo jornais ou servindo como varal — e como isso sugere que a casa de Arandir está sempre cercada, observada, manipulada por forças externas.
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Todas essas propostas e soluções dão um tom atemporal ao texto original, cabendo ele nos anos 1960 ou hoje em dia ou num futuro próximo. Isso é ótimo para o texto, que já envelheceu bem e parece ainda mais afiado com essa encenação.
Também é bom pro texto que a gente não tenha evoluído tanta coisa assim desde meados do século passado.
Sorte do texto.
Nossa, nem tanto.
FICHA TÉCNICA
Texto — Nelson Rodrigues
Direção — Bruno Perillo.
Elenco — Anderson Negreiros, Angela Ribeiro, Heitor Goldflus, Lucas Lentini, Mauro Schames, Natalia Gonsales, Rita Pisano, Roberto Audio e Valdir Rivaben.
Assistente de Direção — Fabio Mráz.
Cenografia — Marisa Bentivegna.
Figurino — Anne Cerruti.
Assistente de Figurino — Adriana Barreto.
Iluminação — Aline Santini.
Trilha Sonora — Dr. Morris.
Fotos — Kim Leekyung.
Produtor Executivo — Fabrício Síndice.
Direção de Produção — Edinho Rodrigues (Brancalyone Produções).
Realização — Sesc SP.
Duração — 80 minutos. Recomendado para maiores de 14 anos.
Serviço
Teatro do Núcleo Experimental
Temporada: 20 de novembro a 12 de dezembro
Quartas e quintas, às 21h
Endereço: Rua Barra Funda, 637 — Barra Funda, São Paulo
Telefone: (11) 3259–0898
Ingressos: R$ 40,00 inteira e R$ 20,00 meia