Sobre “O Arquiteto e o Imperador da Assíria”
Lembra dos memes em 2016 (cinco anos atrás, se pensarmos pelo calendário, ou aproximadamente cinco décadas, se pensarmos em tudo o que vivemos de lá para cá)?
Um deles era sobre como os roteiristas do Brasil superavam, e muito, os roteiristas de House of Cards, aquele suspense político da Netflix. De lá pra cá, tenho sentido um aprofundamento dessa percepção, como se, dia a dia, ano a ano, tragédia a tragédia, estivéssemos vivendo uma realidade que é ainda mais estranha do que a ficção.
Isso ficou martelando minha cabeça durante toda a sessão de O Arquiteto e o Imperador da Assíria, novo trabalho do Garagem 21, em cartaz no CCSP.
Fernando Arrabal, o dramaturgo, versa em seu texto sobre a origem da civilização e sobre a violência intrínseca a este processo. Analisa como a construção da linguagem, do imaginário, dos medos, dos desejos e de outras tecnologias de compreensão e de navegação do mundo é enviesada, parcial, atendendo aos propósitos daqueles que detém o poder para cuidar da inauguração e manutenção deste sistema.
Arrabal reflete sobre o autoritarismo. Não só sobre os perigos e os ridículos dos regimes totalitários (não à toa, Arrabal foi preso pelo regime franquista) mas também sobre como estamos sempre à beira do autoritarismo — afinal, os alicerces violentos do processo civilizatório o convidam a surgir e ressurgir continuamente.
O que potencializa a escrita de Arrabal, neste texto — e que o Garagem 21 detecta e elabora muitíssimo bem — são os contornos absurdos, monstruosos, impraticáveis, dados aos personagens e às situações.
Veja, o absurdo serve como ferramenta de reflexão sobre determinada situação. É uma lente de aumento a partir da qual podemos ver melhor algo, justamente por causa das distorções causadas. Quando vemos a dinâmica entre o Arquiteto e o Imperador, vemos o pior do pior do pior de um sistema. Vemos o mais risível e o mais aterrador, o mais patético e o mais preocupante e, vendo o pior do pior do pior deste sistema, entendemos que devemos evitá-lo.
Contudo, como lidar quando nós, do lado de cá do palco, já superamos há muito o absurdo? O que fazer quando, do lado de cá, já está tudo tão distorcido que a própria lente de aumento dramatúrgica não redimensiona para mais?
Claro, aqui eu não estou criticando o texto original, muito menos a abordagem do Garagem 21 sobre ele. Cesar Ribeiro é fácil um dos diretores mais foda que eu conheço, quando penso na atenção aos detalhes, na direção de arte e na criação de imagens poderosas: até hoje eu rio do uso de Wuthering Heights, de Kate Bush, em Esperando Godot (2016), trabalho anterior do grupo. E tenho certeza de que a mescla de que as imagens propostas no trabalho atual também me acompanharão por um tempo.
É impressionante o modo como Ribeiro organiza as referências que seleciona para construir o universo desta montagem: referências vitorianas se mesclam ao steam-punk com ares sadomasoquistas e acenos à obra de H.R. Giger. A valsa, o heavy metal e a música eletrônica alemã industrial se combinam na trilha, aludindo do etéreo e pacífico à catarse violenta.
Todas as referências, múltiplas e diversas, se unem em seus contrastes e dicotomias, criando este não-lugar que, por extensão, representa qualquer lugar — pensemos nos processos civilizatórios ocidentais dos últimos séculos.
Também não estou criticando o trabalho soberbo de Hélio Cícero e Eric Lenate, que já são dois puta atores e nesse trabalho, em particular, estão monstruosos — muito bem amparados pela preparação de elenco da excelente Inês Aranha.
Vale a pena perceber as construções físicas de ambos, e o modo como a voz ajuda não só a compor os personagens, mas a dar o tom do espetáculo como um todo, partindo do grotesco para o naturalista e de volta ao grotesco.
Há um momento em que Lenate abandona a voz caricata do Arquiteto e fala num registro mais próximo ao natural. Isto é importante porque cria uma ruptura com o que havia sido estabelecido até então (e leva um segundo até que os ouvidos do espectador se adaptem a isso), e isto só sublinha aquilo que será dito a seguir: a fala é tão tenebrosa que ser dita num tom diferente daquele usado até então (mais “real”, por assim dizer) só aumenta seu impacto.
Então, eu só tenho elogios à encenação.
Mas, desde o dia em que eu assisti ao espetáculo, não consigo sair de um certo estado de choque onde eu me pego pensando “caralho, como foi que chegamos a um ponto pior do que aquele exposto num espetáculo como O Arquiteto e o Imperador da Assíria?”
Caralho, em que momento ultrapassamos o absurdo, a ponto de literalmente nos pegarmos pensando “hmmmm, já vivi isso aí antes”?
Por exemplo, um dos traços fundamentais do Imperador, aquilo que o determina como um monstro, é o fato dele ter assassinado a própria mãe.
O pior ato de um vilão numa história absurda é ele ter matado a própria mãe.
Nós já não vimos isso recentemente?
Neste sentido, o timing da nova montagem é muito propício: assistimos a uma fábula sobre ilha arrasada enquanto nós mesmos habitamos uma terra arrasada. O absurdo não ecoa mais como aquilo que pode vir a ser, mas sim como aquilo que está sendo. A pergunta que nos fazemos não é mais “como evitar este estado de desolação” mas “como sair deste estado?”
Há uma cena importante, no final do espetáculo, em que o Arquiteto devora o Imperador. Neste ritual antropofágico, o banquete só finaliza o processo iniciado quando ambos se conheceram: o Imperador já vem alimentando o Arquiteto desde o princípio — suas ideias, conceitos e ordens já vão nutrindo o nativo há tempos. Devorar o Imperador, absorvê-lo em seu próprio corpo, só é uma manifestação física daquilo que já ocorria simbolicamente.
É uma cena alarmante, porque nos faz pensar sobre o que andamos devorando. Se ao devorar seu antigo amo, o Arquiteto se funde a ele de modo indissociável, é importante nos perguntar: nos últimos tempos, o que temos devorado? O que tem entrado em nosso sistema? O que nos tornaremos?