Sobre “Mortos-Vivos: Uma Ex-Conferência”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readOct 6, 2018

Sartre já disse antes que o inferno são os outros, um pouco no sentido de que o espaço comum é partilhado, negociado, disputado continuamente com nossos pares — e os atritos que surgem da constante partilha, negociação ou disputa nos aproximariam mais do tormento eterno do que do idílio paradisíaco.

Claro que tanto “inferno” quanto “outros” são termos consideravelmente abstratos e, portanto, abrangentes: qualquer coisa pode ser o outro que trará o inferno, que também pode ser qualquer coisa. Os comunistas trarão o inferno. Os esquerdistas trarão o inferno. Os LGBTs destruirão a família tradicional usando suas práticas sexuais nefastas, seus kits gays, sua ideologia de gênero (termos absurdos, abstratos, abrangentes, genéricos, irreais e mentirosos, perceba bem, mas muito usados recentemente) e trarão o inferno. A estação de metrô inaugurada no bairro nobre trará “gente diferenciada” e, obviamente, o inferno. Refugiados? Trarão o inferno, certeza. Pessoas de outra religião? Inferno ecumênico. Artistas? Inferno bancado pela Lei Rouanet.

Vivemos tempos de polarização, desconfiança e hostilidade. Poderia falar do Oriente Médio, dos EUA, da Europa, mas às vésperas das eleições, acho que podemos falar daqui mesmo: é perceptível a ascensão da agressividade nas redes sociais, nas ruas, nas conversas nas filas, no uber, nas notícias. Já vi gente apanhar em manifestação por estar vestindo a cor relacionada ao partido rival, igualzinho time de futebol. Já vi gente ridicularizando a morte de outros, só pela vítima estar mais à direita ou mais à esquerda.

Já vi gente cantando “ô bicharada, toma cuidado, o _______ vai matar viado” à luz do dia, cheia de orgulho.

Matar.

Que inferno,né?

Bastante conectados à cultura pop (e à pulp), os cariocas do Foguetes Maravilha usam da figura do zumbi para refletir sobre isso em Mortos-Vivos: Uma Ex-Conferência. No palco, quatro intelectuais apontam estratégias de sobrevivência num mundo tomado por criaturas nojentas, vorazes, insensíveis, desumanas, com hábitos incompreensíveis, entendimento de mundo limitado, sensibilidade zero e uma imensa capacidade de abalar as estruturas da nação e levar a humanidade ao caos absoluto.

Superiores aos outros, os notáveis estão bem cientes de sua superioridade e possuem argumentos de sobra para justificá-la. Também possuem argumentos de sobra para justificar a necessidade de (e mascarar a vontade de) matar o inimigo com tacapes improvisados e televisões de tubo. A barbárie necessária para evitar uma barbárie ainda pior.

Sendo ora didáticos e ora irônicos, os foguetes vão de Arendt e Žižek a gags clássicas (de circo-teatro a Os Trapalhões) para refletir sobre a violência, o sadismo e o medo inerentes aos humanos; sobre o viés de confirmação a partir do qual moldamos nossa visão de mundo; sobre o exercício da alteridade e sobre a ética em períodos de caos (se é que há).

O texto de Alex Cassal consegue articular bem conceitos complexos num texto relativamente fácil, sem pesar a mão no didatismo ou, antes, sem tratar o espectador como intelectualmente inferior. Do mesmo modo, a direção de Renato Linhares encontra imagens simples e fortes (o travesseiro, por exemplo) e é inventiva no uso dos recursos (os microfones que possibilitam que os atores falem no começo da peça quase sem mexer a boca), reforçando o clima de estranheza e absurdo da premissa. Há de se pesar que algumas escorregadas técnicas (a microfonia e a falha nos áudios gravados) deixou o elenco rendido algumas vezes na sessão que assisti, embora isso potencialize, ainda que involuntariamente, o clima de fim do mundo e falência dos sistemas ao qual a peça se refere.*

O elenco também é hábil ao trabalhar com o humor, a sátira e o cinismo, costurando aqui e ali um tom de ameaça, uma violência velada e um fascínio e quase inocência perante o horror. Ver acadêmicos lidando com o mundo assim como crianças brincam de lutinha na sala de casa talvez seja uma das imagens mais pungentes do espetáculo.

Sabemos que o palco é também espelho do momento corrente, mas é sempre inquietante ver as coisas tão de perto. É inquietante ver que Mortos-Vivos surge a partir de uma reflexão de Cassal sobre o drama de refugiados sírios na Europa, mas também se aplica facilmente à relação EUA/México ou à polarização direita/esquerda ou progressistas/conservadores que vivemos atualmente. É inquietante ver como tudo de aproxima da falência, em algum nível.

Que inferno.

*Edit: me deram um toque de que as falhas são mesmo propositais. Então tá, funcionou mesmo.

***

(parêntesis sobre o qual eu gostaria de conversar com vocês: ao ver o espetáculo, me pareceu que ele versava sobre os perigos do extremismo e, em algum nível, sobre a sombra do fascismo; mas o cara atrás de mim aplaudiu e comentou em voz alta com a mulher ao seu lado que a peça era uma crítica à militância da esquerda.

Fiquei pensando como uma peça pode ser entendida de modos tão distintos, como viés de confirmação é uma coisa poderosa e perigosa — eu vi a peça que eu quis ver, ele viu a peça que ele quis ver.

Em épocas de dificuldade do diálogo e pós-verdade, fiquei pirando sobre isso. Alguém tem vivenciado isso por aí?)

Mortos-Vivos: Uma Ex-Conferência. Foto de Francisco Costa

MORTOS-VIVOS — UMA EX-CONFERÊNCIA

Texto — Alex Cassal.
Direção — Renato Linhares.
Elenco — Felipe Rocha/Fabio Osório, Lucas Canavarro, Renato Linhares e Stella Rabello/Wallace Ruy.
Assistência de Direção — Fábio Osório Monteiro.
Colaboração Artística — Marina Provenzzano e Tereza Alvarez.
Direção de Produção– Tatiana Garcias.
Produção Local — Náshara Silveira.
Iluminação — Tomás Ribas.
Cenografia — Estudio Chão — Adriano Carneiro de Mendonça e Antonio Pedro Coutinho.
Figurinos — Antônio Medeiros e Guilherme Kato.
Direção Musical — Domenico Lancellotti.
Consultoria de Som — Leo Moreira.
Desenho de Som — Francisco Slade.
Caracterização — Rodrigo Bastos.
Programação Visual — Lucas Canavarro.
Fotos — Francisco Costa.
Registro em Vídeo — Pedro Henrique Ferreira.
Realização — Foguetes Maravilha.

Até 27 de outubro
Sextas-feiras e sábados às 21h30 e domingos às 18h30.
Ingressos — R$ 30,00 (inteira); 15,00 (aposentado, pessoa com mais de 60 anos, pessoa com deficiência, estudante e servidor da escola pública com comprovante) e R$ 9,00 (credencial plena do Sesc: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo credenciado no Sesc e dependentes).

SESC BELENZINHO — Rua Padre Adelino, 1000 — Belenzinho (próximo à estação Belém do metrô). Telefone — (11) 2076–9700. Acesso para deficientes físicos. Bilheteria — De terça a sábado das 9 às 21h30 e domingos e feriados das 9 às 19h30 (ingressos à venda em todas as unidades do SESC). Capacidade Sala de Espetáculos I — 90 lugares.Estacionamento — Para espetáculos com venda de ingressos após as 17h: R$ 15,00 (não matriculado) e R$ 7,50 (credencial plena no SESC — trabalhador no comércio de bens, serviços e turismo/ usuário). www.sescsp.org.br.

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica