Sobre Monstros Marinhos

Tudo, Menos Uma Crítica
3 min readOct 21, 2023
Monstros Marinhos da Cia dos Imaginários. Foto: Leekyung Kim

Há sempre algo de trágico quando coisas que deveriam resistir não o fazem. Seja um submarino teoricamente indestrutível, seja a solidez da nossa família, seja a saúde daqueles que amamos, seja a nossa própria inocência, é sempre uma tragédia (íntima ou pública, individual ou coletiva) quando as coisas nas quais depositamos nossa fé implodem.

Em Monstros Marinhos, seu novo espetáculo, a Cia dos Imaginários reflete sobre o processo de luto pelo qual uma família passa, a cada nova coisa que devia resistir não o faz, sob a ótica de uma criança, a protagonista da história.

No jogo proposto pela dramaturgia e encenação de René Piazentin, o filtro fantástico pelo qual passam as memórias da menina (o pai invisível, o irmão anjo, a avó que diminui, as garrafas que vêm do mar à costa, o escafandrista, etc etc etc) desenha uma mandala em cena, com suas imagens de significados múltiplos.

O que é real e o que é fantasia são indicados, e um espectador obstinado pode separar este joio daquele trigo, caso deseje, mas o espetáculo é muito mais do que matar a charada e compreender o que cada metáfora significa na realidade, como num exercício de tradução e correlação. A sensibilidade da dramaturgia se dá justamente no limiar entre a realidade e a fantasia, na exata intersecção, pois ela diz tanto sobre o real daquela família, quanto sobre o real daquela narradora (e o que sua imaginação diz sobre sua realidade), quanto sobre o que o espectador, fora do palco, faz com aquelas imagens.

Dentro do aquário-casa-relicário onde habitam as memórias e as percepções da narradora, o luto, a impotência, a solidão, a saudade, e a dor são monstros marinhos que convivem com outras feras tão vorazes e poderosas como o amor, a resiliência e a pulsão de vida que tenta dar ordem ao caos que são as águas turbulentas da vida.

Também nós, plateia, tentamos dar ordem e contorno não aos fatos que ocorrem na dramaturgia, mas às perguntas que ela nos lança, como garrafas ao mar: o quanto da nossa vida é concreto, objetivo e absoluto, e o quanto são nossos filtros, nossas projeções, nossos esforços para adiar ou suportar a implosão das coisas que deveriam durar, mas não duram? O que isso diz sobre nós e sobre nossas experiências? É possível ver exatamente a mesma coisa ao mesmo tempo que outra pessoa, apesar de nossas bagagens, ângulos e filtros? O quanto de nós e de nossas histórias é invenção, ficção e curadoria? Quais são os faróis e cartografias que usamos para navegar, e quais fantasmas nos acompanham nesta jornada?

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.

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FICHA TÉCNICA

Dramaturgia e Direção: René Piazentin. Assistência de Direção: Ingrid Taveira. Elenco: Aline Baba, Anita Prades, Ariel Rodrigues, Fernanda Gama, Giovana Telles, Leandro Galor, Mateus Pigari e Renata Grazzini. Concepção do Espaço: René Piazentin. Figurinos: Marichilene Artisevskis. Adereços: Jesus. Iluminação: Ariel Rodrigues. Operação de Luz: Luana Frez. Direção Musical: Renata Grazzini. Acompanhantes de Processo: Camila Brandão, Chrystian Roque, Marina Gabriela e Sarah Graciano. Assessoria de Imprensa: Nossa Senhora da Pauta. Realização: Cia. dos Imaginários.

SERVIÇO:

Teatro Cacilda Becker — Rua Tito 295 — Lapa
Temporada: De 28/09 a 22/10. Quinta, sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h. Ingressos: Grátis. Distribuição uma hora antes do espetáculo. Duração: 60 minutos. Indicação: 12 anos. As sessões entre 12 e 15 de outubro serão acessíveis com audiodescrição e libras.

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica