Sobre “Monga”
Eu não vou te contar onde estão todas as minas que Jéssica Teixeira planta no solo de “Monga”. Primeiro, porque eu não sei dizer onde todas estão. Cada um sabe das que explodem em si, ou das que vê explodir ao longe — mas há muitas, muitas outras.
Também não vou te contar porque a força de “Monga” é justamente essa: nos fazer atravessar um campo minado, como rinocerontes, detonando uma mina nova a cada novo passo desastrado.
Mas é essencial que você saiba isso: “Monga” é um campo minado, onde explodimos de novo e de novo e de novo no circuito proposto por Jéssica Teixeira.
Campo minado porque a cada pergunta, provocação ou observação de Jéssica, nós somos confrontados com o risco (e a responsabilidade) de explodirmos em nosso próprio capacitismo, etarismo, na falácia da inclusão, no nosso bom samaritanismo, na crueldade com a qual julgamos o corpo do outro e o nosso também.
Foi vendo Monga que fui confrontado com meu etarismo, minha homofobia internalizada, as coisas horríveis que me ensinaram a pensar sobre meu próprio corpo, sendo um homem gay cujo capital erótico é uma das principais formas de se colocar no mundo. Ao mesmo tempo, também me ensinam que o capital erótico (uma das nossas commodities mais valiosas) se esvai rápido, e que nada pior para um gay do que envelhecer.
Então, uma das primeiras perguntas de Jéssica — você se imagina com 100 anos? — detona uma série de reflexões sobre o que esperamos de nossa vida no futuro. O que pensamos da nossa expectativa de vida? Entendemos que envelhecer é um privilégio, ou uma maldição que se aproxima a cada segundo, como um cão de caça? O que chamamos de envelhecer bem? Quais são as condições que impomos para envelhecer (envelhecer com saúde, envelhecer sem depender dos outros) e o quanto de capacitismo e produtivismo capitalista há nisso? O que é envelhecer com saúde, aliás? O que ser saudável, aliás? Qual é a sua rede de apoio agora, e qual será ela no futuro? Qual sua relação com aqueles que te cercam?
Essa é uma das várias perguntas que Jéssica faz ao longo dos pouco mais de 70 minutos de seu solo. Não é à toa que a cenografia evoca um chão de espelhos partidos: Jéssica não só desconstrói uma casa de espelhos, comum nos parques e feiras de diversão nos quais a graça é nos ver “deformados” (o que é ser deformado, aliás? qual é a forma padrão, aliás? quem definiu isso?), mas também nos lembra que não estamos lá para vê-la ou para ver Julia Pastrana. Suas vidas não são um freak show, motherfuckers, como ela declara a certo momento.
Estamos lá para nos ver, e para lidar com aquilo que vemos e nos vê em retorno.
Em seu livro “A Arte Queer do Fracasso”, Jack Halberstam comenta que nós, pessoas queer, somos inerentemente fracassadas, já que falhamos em seguir o padrão heterocisnormativo: não performamos adequadamente a feminiliadade ou a masculinidade, não constituímos uma família adequada, temos um vocabulário inadequado, temos um imaginário inadequado, não cabemos no layout no qual as sociedades ocidentais nos dizem que devemos caber. Com isso, ele defende, nós temos uma oportunidade única: olhar o que é entendido como “adequado”, “ideal” e “sucesso” na cosmogonia heterociscêntrica, e rir disso.
Rir disso porque esses são conceitos limitados, excludentes, enganadores. Rir disso porque eles são como uma roda de um hamster, nos fazendo correr e correr e correr sem sair do lugar, confundindo movimento com ação, gastar energia com perseguir um propósito. Rir para, uma vez admitindo o ridículo de se pensar que só existe um jeito de existir no mundo (e esse é o jeito aprovado pela heterocisgeneridade), podemos implodi-lo e inaugurar milhares de novos jeitos de existir no mundo, novos jeitos de ser, de sonhar, de desejar, de vibrar, de (se) amar.
Jéssica vai pelo mesmo caminho. Nos faz ver o quão limitada é a compreensão da plateia sobre saúde, sobre normalidade, sobre o sucesso, sobre o desejado, sobre o que nós estamos acostumados a ver (e porque nos acostumamos a isso).
Jéssica nos convida a confrontar os limites de nossa compreensão sobre uma série de assuntos, e nos deixa com a angústia (e a responsabilidade) de decidir o que fazer a respeito.
As explosões de “Monga” me fizeram lembrar de que poucas coisas são tão revolucionárias como bichas velhas, e que nossa comunidade precisa ter sérias conversas sobre a síndrome de peter pan que nos assola. Como ter outras compreensões de outros corpos numa sociedade onde o capitalismo tardio nos diz que só servimos enquanto formos independentes e produtivos, e enquanto a indústria do entretenimento, das comédias românticas ao pornô, nos diz quais corpos devem ser amados, e como?
Jéssica sugere que, para ela, dançar, ler livros, beber, fazer teatro, tudo isso fazia o seu céu ficar mais estrelado e o chão, mais macio. Acho que concordo com ela: depois que me recobrei das explosões, de fato senti o chão mais macio, abaixo do campo minado.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Para mais informações sobre o projeto, entre em contato.__
MONGA
De 26/09 a 26/10. Quinta a sábado, às 20h. Domingos, às 18h.
Sessões extras nos dias 16 e 23/10, às 20h. Todas as sessões contam com Libras. Audiodescrição nos dias 17, 18, 19 e 20/10.
Local: Sesc Avenida Paulista — Av. Paulista, 119 — Bela Vista
Ingressos: R$60 (inteira), R$30 (meia-entrada) e R$18 (credencial plena)
Direção geral, dramaturgia e atuação: Jéssica Teixeira
Direção de arte e identidade visual: Chico Henrique
Direção musical: Luma
Direção técnica e iluminação: Jimmy Wong
Videoartista e operação de câmeras: Cecília Lucchesi
Montador e contrarregra: Aristides de Oliveira
Preparação Corporal: Castilho
Luz da primeira abertura de processo: Aline Rodrigues
Música do início: “Real Resiste”, de Arnaldo Antunes
Músico parceiro: Victor Lopse
Fotos oficiais: Camila Rios
Texto gravado: “Entre Fechaduras e Rinocerontes”, de Frei Betto
Produção: Rodrigo Fidelis, Gabs Ambròzia, Gabi Gonçalves e Corpo Rastreado
Criação: Catástrofe Produções e Corpo Rastreado
Agradecimentos: Acauã Shereya, Andreia Duarte, Dinho Lima Flor, Daphne, Edgar, Edson Vogue, Edson Teixeira, Edu O, Fausto Morales, Gerson Greco, Guilherme Marques, Ivana Moura, João Barreto, Joaquina Carlos, Jorge Alencar, Luqueta, Marcio Piccoli Marta Pelucio, Neto Machado, Orlando Luiz Araujo, Pollyanna Diniz, Rodrigo Mercadante, Tainá Medina, Thiago Nascimento, Thomaz Aragão, Vera Carvalho, Victor Di Marco, Yasmin Gomes.