Sobre “Misery”

Tudo, Menos Uma Crítica
7 min readFeb 10, 2022
Mel Lisboa e Marcello Airoldi. Foto: Leekyung Kim

Annie Wilkes não é apenas uma das maiores vilãs da mitologia de Stephen King, um dos principais escritores de terror e suspense da contemporaneidade, como é, também, uma das maiores vilãs do século XX.

Astuta, determinada e profundamente comprometida com suas convicções, Wilkes é a força motriz em Misery, livro de King publicado em 1987, tanto quanto Hannibal Lecter é a força maior nos livros de Thomas Harris, ou Iago é o arquiteto da desgraça de Otelo. Seu apelo e magnetismo surgem, sobretudo, dos contrastes com as quais é desenhada: sádica e com uma visão de mundo deturpada, Wilkes também é admirável por sua engenhosidade e inteligência — é ela quem dá as cartas ao longo de toda a história, sendo não apenas física, mas intelectualmente mais apta do que Paul Sheldon, o outro protagonista da obra.

Além de ser um personagem complexo e de muitas nuances — como Lecter, Iago, Macbeth, Giro, Boca de Ouro, entre outros vilões e anti-heróis cujas trajetórias é um prazer acompanhar — , Wilkes é importante por significar muito tanto na história da literatura de suspense do século XX quanto no corpo da obra e na própria biografia de King.

Começando pela história da literatura: Wilkes está para King assim como Clegg está para John Fowles. Em O Colecionador, aclamado livro de Fowles, Frederick Clegg se apaixona pela estudante de arte Miranda Gray e a mantém refém em seu porão, crente de que a convivência e sua “gentileza” para com sua capturada a farão retribuir seu “amor”. A partir da dinâmica entre ambos, Fowles discute amor, obsessão, o que é arte e conflitos de gênero e classe.

Em Misery, King se aproveita do template de Fowles (inclusive citando-o em algumas passagens do livro), subvertendo os polos: é Wilkes quem mantém refém o objeto de seu desejo. Assim, King discute idolatria, as relações de consumo e posse entre artistas e seu público, o que pode ou não ser considerado literatura e reflete sobre a maldade que se esconde sob a fachada de simpatia e normalidade nas cidades interioranas dos EUA — tema recorrente nas obras de King, aliás.

Wilkes também é uma das principais personagens do rol de King pela sua relação direta com a biografia do autor: Misery é, declaradamente, uma alegoria sobre o histórico de abuso de substâncias do autor. Wilkes personifica o vício: é ela a figura inescapável que mantém o escritor isolado do mundo, sob seu domínio, torturando-o recorrentemente — não à toa, Sheldon passa a maior parte da obra sofrendo pela abstinência de Novril, remédio administrado por Wilkes.

Wilkes é tão imensa em Misery que Sheldon/King a chama de “deusa”: é ela quem controla as ondas de consciência e inconsciência, de dor e de alívio, de medo e segurança às quais o narrador está submetido — e quando lido a partir desta perspectiva, Misery ganha novas camadas de fruição.

A montagem atual de Misery prefere observar Wilkes sob uma outra luz, entendendo-a como uma “pessoa normal, que vive num mundo hostil, dominado por homens mesquinhos e que sempre precisou se defender e enfrentar as dificuldades da vida, só isso”, nas palavras da direção.

Se isso significa abordar a personagem por um ângulo inédito e empático, e significa comentar sobre o ego masculino faminto de Sheldon (excelentes pontos de partida, aliás), também significa desviar o olhar, em certa medida, do fato de que se trata de uma história de abuso, sequestro e violência.

É importante não perder de vista que Wilkes salvou a vida de Sheldon e cuidou de suas pernas, da mesma forma que é importante observar o ego masculino de Sheldon (aspecto bem trabalhado na atuação e na direção) e a sua arrogância perante a ex-enfermeira — o que pode render discussões interessantes sobre classe e academicismo.

Contudo, também é necessário manter em vista que Wilkes mantém Sheldon cativo, sem avisar as autoridades ou a família do escritor sobre seu paradeiro. Ela também o tortura emocional, física e mentalmente, e está tão distante da figura de boa anfitriã quanto Clegg está da figura de boa pessoa, quando cuida da pneumonia que Miranda contrai no cativeiro.

Deslocá-la tanto assim do papel de vilã tem potencial para levantar questões interessantes, mas não sem o risco de desidratar pontos centrais da obra original, e características essenciais dos personagens, da mesma forma que tratar Hannibal Lecter como um homem com gostos culinários exóticos, ou Iago como alguém incompreendido, esvaziariam o Silêncio dos Inocentes de sua carga de horror ou amenizariam a potência trágica de Otelo — além de empobrecer aquilo que os personagens têm de tão icônico.

Esta decisão também tira Wilkes do papel de agente da história e a redefine como reagente.

Veja: no original, é ela quem mente, engana e manipula Sheldon e o departamento de polícia, da mesma forma que é ela quem não cai nas mentiras deles:

Como nítido no livro, se ela derruba a taça, no jantar, é por saber que está batizada — coisa que ela informa a Sheldon algumas cenas no futuro, quando diz que sabe que ele tem roubado remédios. Se ela aparenta cair na lábia dele, é apenas para dar corda antes de enforcá-lo (ou, no caso, aleijá-lo).

Ela sabe que ele tentou dopá-la e é por isso que ela derruba a bebida, e ela sabe que ele vai tentar atacá-la com a faca, por isso ela procede com o ataque a marretadas (nas adaptações cinematográficas e teatrais) ou a machadadas (no livro).

Mel Lisboa. Foto: Leekyung Kim

A cena da marretada/machadada, aliás, é essencial para o desenvolvimento da trama por ser o ponto de onde não há retorno, a mudança definitiva de dinâmica entre os dois personagens, a passagem para o próximo ato (e a ressignificação de tudo que aconteceu até então na história).

Nesta adaptação, contudo, não se trata de um fato consumado, mas de um sonho de Sheldon (e uma piada de Wilkes).

Se, por um lado, essa reorganização no esquema geral das coisas reenquadra Wilkes e Sheldon de um jeito muito particular e funciona como ponto de vista para a mente adoecida de Sheldon — aliás, a plasmação cênica é super bonita, com uma iluminação com ares expressionistas, um uso interessante de eco e uma solução bastante interessante visualmente para o ato da marretada — , por outro ela também desfaz toda a tensão da história, da qual essa cena deveria ser o ápice, e deixa claro que Paul Sheldon não corre nenhum risco nas mãos da sequestradora.

É o equivalente a transformar a cena de tortura e morte em O Abajur Lilás em um pesadelo de Leninha, ou no suicídio de Romeu num delírio de Julieta induzido pela poção do Frei: dilui a tensão, esvazia a dimensão trágica das obras e garante um final feliz que os personagens não teriam de outra forma, dentro da estrutura dramatúrgica vigente.

Claro, se esta troca tira essas dimensões do tabuleiro, outras surgem em seu lugar — se a substituição gera uma experiência mais ou menos interessante, vai de cada fruidor.

Se as escolhas da equipe criativa fortalecem e enfraquecem aspectos distintos desta adaptação, reverberando de modo particular nas expectativas de cada espectador, vale salientar como o elenco é essencial para os êxitos da montagem:

Marcello Airoldi lida muito bem com as sombras de Sheldon, elaborando uma raiva contida, uma arrogância e um sarcasmo que enriquecem muito o personagem. E Mel Lisboa, uma das atrizes mais talentosas da sua geração, encontra uma característica solar insuspeita e bem-vinda em Wilkes.

Da mesma forma, a tradução de Claudia Souto e Wendell Bendelack localiza a dramaturgia de William Goldman (a fonte da maioria dos problemas da montagem) no nosso idioma com muita desenvoltura, adaptando muito bem o vocabulário peculiar de Wilkes com expressões idiomáticas que evocam humor e familiaridade.

Assim, Misery empalidece bastante em comparação ao brutal material original — e longe de mim dizer que sou o fã número um do livro, eu conheço os assuntos da obra bem o suficiente para não cair nessa esparrela — mas tem o benefício de ter dois atores muito talentosos para lhe conferir a complexidade que a adaptação de Goldman tira.

Mel Lisboa e Marcello Airoldi. Foto: Leekyung Kim

MISERY

Até 27 de março de 2022 no Teatro Porto Seguro em São Paulo (SP).
Sexta a domingo (sextas e sábados, às 20h e domingos, às 19h). As sessões aos domingos contam com intérprete de Libras

FICHA TÉCNICA

Texto Original: Stephen King. Dramaturgia: William Goldman. Tradução/Adaptação: Claudia Souto e Wendell Bendelack. Elenco: Mel Lisboa, Marcello Airoldi e Alexandre Galindo. Direção Artística: Eric Lenate. Direção De Produção: Bruna Dornellas e Wesley Telles. Desenho De Luz: Aline Santini. Arquitetura Cênica e Adereços: Eric Lenate. Figurinos: Leopoldo Pacheco e Carol Badra. Visagismo: Leopoldo Pacheco. Assistente de Figurino e Visagismo: Bruna Recchia. Trilha Sonora, Sonoplastia e Engenharia De Som: L. P. Daniel. Direção Audiovisual: Júlia Rufino. Assistente de Iluminação: Vinicius Andrade Direção de arte projeções: Sylvain Barré Fotos: Leekyung Kim. Criação da Arte: Leticia Andrade. Assistência de Direção: Mariana Leme. Produtor Assistente: Tiago Higa Assistência de Desenho de Luz e Operação Técnica: Clara Caramez. Assistência de Engenharia de Som e Operação Técnica: Rodrigo Florentino. Assistência de Vídeos e Operação Técnica: Vj Alexandre Gonzalez. Direção Cenotécnica: Evas Carretero e Rafael Boesi. Serralheria: José da Hora. Designer Gráfico: JLStudio. Mídias Sociais: Agência Taga. Coordenação Administrativa: Letícia Napole. Assessoria Jurídica: PMBM Advocacia. Assessoria Contábil: Leucimar Martins. Gestão de Patrocínio: Mina Cultural Consultoria. Marketing Cultural e Assessoria de Mídia: R+Marketing. Assessoria de Imprensa: Pombo Correio. Apresentado Por: Ministério do Turismo. Patrocínio: ArcelorMittal e Porto Seguro. Produtor Associado: WB Entretenimento Realização: WB Produções.

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica