Sobre “Mansa”
Digamos que Mansa fale sobre duas mulheres, dois monstros, que assassinaram o próprio pai, um respeitável líder religioso, com requintes de crueldade.
Ou digamos que Mansa fale sobre duas meninas, vítimas de um pai controlador que vêem no assassinato dele (quase uma legítima defesa?) sua única esperança de liberdade.
Se toda história tem, pelo menos, dois lados, Mansa parte deste crime para, numa dramaturgia coral, investigar diversos pontos de vista sobre o caso, bem como suas repercussões. Quem cometeu a maior violência: o pai castrador ou as filhas que recorrem ao parricídio? Ou os meninos que invadem escondidos o terreno para ver as meninas trocarem de roupa? Ou a mídia que constrói a narrativa necessária para ter o máximo possível de audiência, independente das vidas das pessoas reais?
Assim, mais do que uma simples história de mistério sobre quem matou e porque, o espetáculo é uma investigação sobre a violência física, psicológica e simbólica sofrida pelas mulheres. As agentes principais do drama, as duas filhas que assassinam o pai, não têm voz; em vez disso, Amanda Mirásci e Nina Frosi interpretam personagens masculinos que narram a história a partir de seus pontos de vista e suas convicções — de modo que, à longa lista de violências, soma-se também o silenciamento.
Ora as mulheres servem como propriedade numa estrutura patriarcal, ora servem como objeto de prazer num contexto heteronormativo, ora são instrumento de manutenção dos clichês que mantém as relações de poder: mulheres são desequilibradas, passionais, traidoras, a porta do pecado no mundo, ainda bem que existem os homens para amansá-las.
Simbolicamente, a figura da égua potencializa as leituras: pode ser entendida como aquilo que é livre, que resiste à domesticação e ao cárcere; mas também é aquilo que só tem uso para nós se for amansada.
Com bastante atenção à fisicalidade, Mirásci e Frosi transitam entre diversos personagens a partir de mudanças relativamente simples: uma postura, um peso, um tônus diferentes. Por um lado, isso potencializa a teatralidade do evento, já que elas só dão indícios dos personagens, cabendo ao espectador preencher as lacunas e completar as formas. Por outro, às vezes isso pode ser bastante desafiador para o espectador: leva um certo tempo até entender qual personagem é quem, e nesse exercício de entender quem está interagindo com quem, perde-se informações importantes da história. Na sessão que eu assisti, tive alguma dificuldade em perceber que todos os personagens eram homens, informação que se confirmou depois, na leitura do release da peça. Demérito das atrizes? Não. Meu? Também não. Mas houve algum ruído ocasional na comunicação.
Ainda falando das propostas físicas, o espetáculo ganha novas camadas quando a égua é posta em cena, pelo corpo de Mirásci. É uma cena dura de se ver, mas que sintetiza todo o espetáculo: a fêmea forte que vai, lentamente, perdendo suas forças e empalidecendo (embora não sem luta).
[e não escapa à mim que estou fazendo exatamente o que os personagens de Mansa fazem: sou um homem falando de mulheres]
O cenário de André Vechi brinca com a ideia de arqueologia proposta pela dramaturgia, ao mesmo tempo em que sugere o local onde o corpo foi enterrado e o terreno devastado numa época pós-crime, criando um não-lugar onde passado e presente são projetados. Aliada a isso, a ótima luz de Livs Ataíde desenha o espaço e conduz o olhar do espectador, brincando também com tons e climas: ora as coisas parecem artificiais e frias, ora parecem sombrias.
E a direção de Diogo Liberano sabe ser discreta, criando uma base para que o cenário, a luz e, sobretudo, as atrizes, se destaquem. É uma escolha ótima, já que o elenco, elemento essencial no espetáculo, se apropria das propostas dramatúrgicas de André Felipe e físicas de Natássia Vello e leva mais adiante a discussão sobre a violência contra a mulher. Ainda assim, o diretor sabe desenhar imagens interessantes, como o tapete coberto de terra.
Ainda assim, se tem algo que Mansa defende, é que mais importante do que ouvir a história por terceiros (como este texto), é ver o evento com os próprios olhos (tanto quanto for possível) e tirar suas próprias conclusões (do modo mais ético possível). Então não confiem no que o homem aqui disse, e vão ver vocês mesmos.
MANSA
Dramaturgia: André Felipe
Direção: Diogo Liberano
Atuação: Amanda Mirásci e Nina Frosi
Assistência de Direção: Marcéli Torquato
Direção de Movimento: Natássia Vello
Cenografia e Figurino: André Vechi
Iluminação: Livs Ataíde
Direção Musical: Rodrigo Marçal
Registro Fotográfico: Thaís Barros
Mídias Sociais: Teo Pasquini
Design Gráfico: Diogo Liberano
Direção de Produção: Amanda Mirásci e Diogo Liberano
Idealização: Amanda Mirásci, Diogo Liberano e Nina Frosi
Realização: Arrakasta Produções Artísticas
SERVIÇO
Mansa, de André Felipe, com direção de Diogo Liberano
Viga Espaço Cênico — Sala Viga — Rua Capote Valente, 1323 — Pinheiros
Temporada: 8 de fevereiro a 31 de março de 2019
Às sextas e aos sábados, às 21h; e aos domingos, às 19h
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$20 (meia-entrada)
Informações: (11) 3801–1843
Classificação: 16 anos
Duração: 1h10min
Capacidade: 73 lugares
Gênero: Drama