Sobre “Magnólia”

Tudo, Menos Uma Crítica
6 min readNov 27, 2024

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Sonhos, assim como relâmpagos, iluminam as noites. Cortam o breu e iluminam o que antes era escuro. Como trovões, sonhos rugem, são insilenciosos e insubmissos.

Sonhos, assim como relâmpagos, são pura energia. E, como tal, têm poder para muito: iluminar o céu, abrir a terra, eletrizar aqueles que são transpassados por eles.

A Magnólia de Marina Esteves é a mulher preta sonhada por uma mulher preta. Esse sonho encerra em si uma cosmogonia: galáxias, divindades, plantas, plânctons, a festa, a tragédia, o futebol, o suor, o grito de gol, o horror (mas não só), o deleite, a resistência, a gravata florida, tudo está lá. Costurado como a costura de um poema épico, um mito, um álbum ou uma biografia.

Como estrelas que colidem e formam quilonovas, o texto de Esteves e Lucas Moura fricciona o álbum A Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben Jor a uma trama original, e a elementos biográficos da atriz, diretora e idealizadora do projeto.

Friccionam dramaturgia, spoken word, música ao vivo, elementos de teatro épico e dança. A quilonova que surge disso é uma fábula sobre uma deusa astronauta que vive na dimensão azul e rosa e que recebe de São Jorge a missão de descer na Terra como um ser humano. Aqui, brota como uma flor e floresce como mulher preta que experimenta na pele-pétala o que isso significa. Magnólia, a heroína mítica, é a quilonova gerada pelo sonho de uma mulher preta.

Magnólia, o espetáculo, é a quilonova gerada pelo sonho de uma mulher preta.

É bonito ver como o espetáculo é um sonho vindo de um sonho: ele existe porque Esteves o sonhou, e Esteves é, ela mesma, o sonho de alguém que também foi sonhado antes. Não falo aqui de uma qualidade meta, não se trata disso. Se trata de uma qualidade espiralar, de um tempo que se impulsiona pra frente amparado por aquilo que está atrás, de um futuro que brota do solo do passado e será, ele mesmo, adubo do porvir.

Relâmpagos, quilonovas, sonhos, futuro, passado, presente e teatro, todos são, em alguma medida, energia, calor, rugido, eletricidade a iluminar o céu e a romper o silêncio — e carregam, de alguma maneira, a potência de mudar aquilo que atravessam.

Magnólia. Foto: José de Holanda

Quando eu assisti a Magnólia, no Itaú Cultural, assisti dentro do contexto da Estufa, residência de espectadores que conduzi junto à minha colega Marô Zamaro. O projeto é simples: um grupo de pessoas espectadoras que vê teatro juntas e se perguntam sobre o que assistiram. Uma das perguntas que nos fizemos, inspirados pelo solo, foi se toda biografia não carrega sem si uma dimensão mitológica.

Acho que essa é uma excelente pergunta pra se fazer ao assistir Magnólia, para entender como Esteves e Moura usam o documental não para ancorar sua mitologia na realidade mas para, ao invés disso, reconhecer o que há de mágico, lendário e infinito em tudo aquilo que foi captado numa fita VHS no início dos anos 1990. Reconhecem a beleza e a magia que há na expectativa do futuro bom, no sorriso, na tarde com a família prestes a crescer, como uma profecia autorrealizável.

Gravar um álbum nos anos 1970, reunir a família nos anos 1990, estrear uma peça na década de 2020… tudo um tipo de alquimia, um meio de conjurar uma nova realidade, de projetar uma nova possibilidade de futuro.

Magnólia. Foto: José de Holanda

Ando lendo muito sobre queer joy , esse conceito que eu conheci muito recentemente e pelo qual ando fascinado. Queer joy, explicando muito grosseiramente, é a sensação positiva que pessoas LGBTQIAPN+ sentem sobre si mesmas, sobre as outras, sobre sua comunidade e sua cultura. É a alegria única e intrasferível de ser uma pessoa queer, é o deslumbramento pelas potências de ser alguém emancipado da heterocisnormatividade. É o acolhimento do prazer.

Da mesma forma, existe também o black joy. E, me parece, Magnólia se aproxima muito desse conceito. A saga da deusa-astronauta-flor-mulher que foi sonhada por uma mulher preta é uma saga, sobretudo, feliz.

Não que não haja o horror naquilo que Magnólia testemunha. Há. Não que não hajam provações na epopeia de Magnólia. Elas existem. O sonho que a sonha corre risco, aqui e ali, de ser infiltrado por pesadelos. Mas há, na jornada de Magnólia, e no espetáculo em si, uma pulsão de vida tão intensa, uma celebração da Magnólia e das demais Magnólias, dos sonhos de onde elas surgem e de quem as sonhou, que isso se torna um pouco a tônica da peça.

Há muita vida (e paixão pela vida, e felicidade pela vida) em cada acorde da banda, em cada mudança de luz. A vida efervesce no palco, como uma quilonova ardente.

O oposto do sonhar não é a morte, diz Hermes Trismegisto a Magnólia. O oposto do sonhar, diz ele, é o despertar. O teatro deve estar por aí também: um tipo de sonho desperto e feliz, de transe profético que mira o futuro e o passado, entrecruzando-se no nexo do palco.

Magnólia. Foto: José de Holanda

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena e @cena.aberta.teatro , junto à produtora @corporastreado

Para mais informações sobre o projeto, entre em contato.__

Magnólia
Dias 25, 26, 29 e 30/11. Seg, ter, sex e sáb, 17h e 20h.
Casa Mundu Roda — Rua Southey, 106, Ipiranga.
R$ 40,00

Concepção, Idealização, Direção Geral e Atuação: Marina Esteves
Dramaturgia: Lucas Moura e Marina Esteves
Texto: Lucas Moura
Dramaturgismo: Marina Esteves
Pesquisa musical para dramaturgia: Marina Esteves e Lucas Moura
Assistência de Direção: Lucas Moura
Concepção Musical: Dani Nega e Marina Esteves
Direção Musical: Dani Nega e Marina Esteves
Dramaturgia Sonora: Dani Nega, Lucas Moura e Marina Esteves
Produção de Beats, Produção Musical e Trilha Original: Dani Nega
Colaboração de arranjos ao longo de todo o espetáculo: DJ K-Mina (pick-ups e voz) Gisah Silva (percussão e bateria), Larissa Oliveira (Trompete e voz), Melvin Santhana (guitarra, violão e voz)
Desenho de luz: Matheus Brant
Desenho e Operação de som: André Papi
Figurino: Ayomi Domenica
Cenografia: Léo Akio
Videografia: Gabriela Miranda e Matheus Brant
Preparação Corporal e Orientação de Gestos: Ricardo Januario
Preparação vocal: Rebeca Jamir
Musicistas: DJ K-Mina (pick-ups e voz) Gisah Silva (percussão e bateria), Larissa Oliveira (Trompete e voz), Melvin Santhana (guitarra, violão e voz)
Assistência e Operação de Luz: Letícia Nanni
Vídeo Mapping: Aline Sayuri
Operação de Vídeo: Anna Belinello
Costureiras: Claudineia da Silva Barros, Jonhy Karlo e Selma Paiva
Aderecista: Edivaldo Zanotti
Modelista: Talita Borges
Assistente de Design: Regina Torres
Design de Jóia da Cabeça: Opvs Magnum
Voz off Hermes: Carlota Joaquina
Técnico de Gravação — vozes em off: Fernando Sampaio
Arranjo da música “Zumbi”: Kiko Dinucci
Assistência e operação de luz: Letícia Nanni
Consultoria: Roberta Estrela D’Alva
Consultoria em estudos teóricos: Deivison Faustino
Pesquisa biográfica Jorge Ben Jor: Marina Esteves
Acompanhamento processual: Ângelo Fábio
Orientação litúrgica: Mameta Alaíde Honorato da Silva (Kamitina) e Tatetu Arildo da Silva (Kelawê)
Fotografia de divulgação: José de Holanda
Fotografia de cena: Noélia Najera
Vídeos de divulgação: Léo Akio (direção) e Cássio Rothschild (fotografia)
Designer Gráfico: Murilo Thaveira
Serralheria e solda: Fábio Lima
Lojinha Magnólia: Chidi Portuguez, Daniela Campanholo, Isaque Oliveira, Murilo Thaveira
Assessoria de imprensa: Canal Aberto — Márcia Marques, Daniele Valério e Carina Bordalo
Produção: Corpo Rastreado — Leo Devitto

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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