Sobre “Leão Rosário”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readJun 23, 2024

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O texto abaixo foi escrito pelo autor, jornalista, roteirista e poeta Tiago Leão a convite do Tudo, Menos Uma Crítica

Leão Rosário. Foto: Pablo Bernardo

QUEM TEM MEDO DA VELHICE?

Você está envelhecendo. O mundo está envelhecendo. A civilização humana está envelhecendo. Numa pesquisa recente feita pela revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, divulgada pela BBC, constatou-se que a sociedade, no registro histórico, perde gradualmente a resiliência; conflitos sociais, desigualdade, degradação do clima, entre outros fatores, contribuem para o fim dos “estados” pré-modernos como conhecemos.

Mas não contribuem, de fato, para o fim de todos nós?

A velhice é, muitas vezes, entendida como fraqueza, decadência e senilidade. Na cosmovisão eurocêntrica — alicerçada na racionalidade e na dominação — ser velho não reúne qualidades admiráveis socialmente. A pauta do etarismo ainda é novidade nas discussões atuais de mesas de bar. Detalhe curioso é que no momento em que redigia este texto, a palavra “etarismo” foi grifada de vermelho, como inexistente, e a sugestão dada foi “eterismo”. Talvez, seja mais comum padecer de intoxicação por éter, do que pela discriminação causada pela velhice.

Leão Rosário, em cartaz até dia 23 deste mês, no CCBB SP, é uma peça inspirada em Rei Lear — uma das dramaturgias mais emblemáticas de Shakespeare — e no conjunto da obra de Bispo do Rosário; artista que teve a trajetória pautada pela poética da loucura.

Leão Rosário. Foto: Pablo Bernardo

Ambientada numa África atemporal, a história, com direção de Eduardo Moreira, apresenta o rei ancião traído e rejeitado pelas próprias filhas. Com a temática de envelhecimento, o espetáculo aborda o isolamento sofrido pelos que envelhecem e/ou enlouquecem.

É neste momento que a beleza conflitante entre texto Shakespeariano e poética africana desafia a peça, uma vez que a velhice, associada à decadência por uma filosofia ocidental baseada na racionalidade, é ressignificada pela sensibilidade anciã.

A relação entre jornada de vida e elementos da natureza, base da cosmovisão africana, faz com que Leão Rosário ascenda de um rei decadente para um griô (mestre da oralidade e das artes africanas), que acolhe a consequência de escolhas insensatas como aprendizado, não castigo.

O ator, roteirista e escritor, Adyr Assumpção, dá voz a um personagem que corporifica a potência e versatilidade da própria jornada do artista. O mineiro estreou nos palcos, em 1974, como “Puck”, personagem de Sonhos de uma noite de Verão, e agora retorna, celebrando suas 5 décadas de carreira, ao universo de William Shakespeare.

Leão Rosário diz mais no palco do que a dramaturgia sugere. As cores, luzes e sons parecem ir de encontro ao texto estilístico e traz uma oralidade ritmada que foge das letras da narrativa-base. Uma sensação de familiaridade tira o espectador do inebriante jogo de palavras de Shakespeare — o que é um grande feito — e o transporta para um estado de “sinto, logo, existo”.

Leão Rosário. Foto: Pablo Bernardo

No palco, Adyr interage com objetos variados que representam as três filhas de Leão (Lear) e outros personagens da história; com essa temática lúdica que flerta com o fantástico, a peça constrói diálogos entre objetos, por meio de vozes gravadas. Neste aspecto, por mais que o recurso escolhido potencialize a presença de Adyr em cena, prejudica o ritmo harmônico da prosa, causando estranhamento a quem ouve as inflexões e exclamações pouco orgânicas frente à potente interpretação do protagonista.

Por outro lado, o aspecto fantasioso traz para o espetáculo uma áurea quase infantil de contação de história. E isso, mais uma vez, revela a grandeza da narrativa africana que evoca emoções, algumas vezes, distantes para nós adultos, mas facilmente acessadas pelas crianças.

Curiosamente, sob a perspectiva deste olhar, a velhice apresenta-se muito mais como uma jornada a ser acolhida, enquanto a loucura já não é vista com tanto receio. Afinal, não é o “sentir” que faz de crianças e velhos, “Williams” e “Bispos” tão “eu” e menos “outro”?

Leão Rosário é um espetáculo que sugere desafio à nossa visão de mundo sobre velhice, loucura e tragédia. Na ginga poética entre as narrativas em cena, é possível que o público saia do teatro com a sensação de um aprendizado ancestral, sensível e nem um pouco senil.

Sim, nós estamos envelhecendo.

Tiago Leão é escritor, roteirista e jornalista mineiro, morando atualmente na cidade de São Paulo. Apaixonado por histórias e livros, escreveu o primeiro romance, quando tinha dezesseis anos de idade, o que deu origem às suas duas primeiras publicações: A fabulosa terra de Lúmens e Escarlate, lançadas pelas editoras Crivo e Letramento.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado

Para mais informações sobre o projeto, entre em contato.__

Leão Rosário
Temporada SP
: 24 de maio a 23 de junho
Local: Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo — Rua Álvares Penteado, 112 — Centro Histórico, São Paulo — SP

Temporada RJ: 3 a 28 de julho
Local: Centro Cultural Banco do Brasil — R. Primeiro de Março, 66 — Centro, Rio de Janeiro — RJ
Horário: Quarta a sábado, 19h | Domingos, 18h.
Ingressos: R$30 (inteira) e R$15 (meia) em bb.com.br/cultura e bilheteria do CCBB (Disponíveis a partir de 24 de junho)

Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil e Ministério da Cultura
Concepção, dramaturgia e atuação: Adyr Assumpção
Direção: Eduardo Moreira
Assistente de direção: Letícia Castilho
Inspirado na obra Rei Lear de William Shakespeare na tradução de Millôr Fernandes
Direção Musical e Preparação Vocal: Ernani Maletta
Preparação Corporal: Camilo Gan
Cenário: Jorge dos Anjos
Objetos e Adereços em bambu: Lúcio Ventania
Adereços: Adriana D’Assumpção
Iluminação: Eliezer Sampaio
Arquitetura: João Diniz
Manto e Farda: Bordados: Stella Guimarães
Manto e Farda: Modelagem: Silvia Reis
Túnicas: Rosângela Cristina de Oliveira
Trilha Sonora Original: Heberte Almeida
Vozes gravadas: Michelle de Sá (Makeda),Elisa de Sena(Akosua),Iasmim Alice(Agotimé), Reibatuque (Rei das Matas), Eduardo Moreira ( Sundiata) e Ernani Maletta (Sotigui).
Músicos: Heberte Almeida, Pablú e Leo Alves
Estúdio de Gravação e Mixagem: Leonardo Marques — Ilha do Corvo
Mixagem de voz : Flora Guerra
Programação Qlab — Vinicius Alves
Fotografia: Pablo Bernardes
Vídeos: Alex Queiróz
Design Gráfico: Flávio Vignoli
Produção Executiva: Tâmara Braga e Maíz d’Assumpção
Idealização e Produção: T’AI Criação e Produção
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica