Sobre “Kintsugi, 100 memórias”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readJun 4, 2019

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Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Saramago, no Ensaio Sobre a Cegueira.

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A neurociência diz que a memória é a mescla de duas coisas: tudo aquilo que nosso cérebro reteve da experiência e tudo aquilo que ele inventou sobre a experiência. Como é impossível reter tudo o tempo todo, nosso cérebro registra uma parcela do todo e, quando reacessamos a memória, as lacunas daquilo que esquecemos ou não percebermos são preenchidas pela nossa imaginação.

Da mesma forma, é possível alterar memórias passadas, ou mesmo inventar memórias — os escritos sobre o tema vão desde a PNL até artigos sobre como práticas de interrogatório podem influenciar as lembranças de vitimas/suspeitos de determinado crime.

Assim, lembrar é também um ato de criação.

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Kintsugi é a técnica japonesa de restaurar uma cerâmica danificada utilizando uma mistura de laca e pó de ouro (ou prata ou platina). O objeto que foi reparado com essa técnica passa a ser mais valioso do que seu similar intacto — afinal, ele tem história, ele tem memória.

É interessante notar também como o kintsugi valoriza as marcas ao invés de apagá-las, no caminho oposto ao do restauro ocidental tradicional, onde o desejável é que a ação fique imperceptível. Em certa medida, uma técnica tenta apagar um ocorrido, apagar uma memória, enquanto outra assume e valoriza essa história.

Parêntesis: a história do quadro clássico restaurado que, pelo restauro em si ganhou espaço tanto como meme quanto como objeto de estudo na arte contemporânea

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Celebrando mais de três décadas de história, o Lume parte de uma memória de um evento ocorrido há dez anos para falar de história: as histórias individuais e as histórias individuais que, unidas, formam a memória de um grupo de teatro ou de uma nação.

Mais do que isso, o Lume embola o passado e o presente (afinal, o passado é trazido ao presente quando os atores o evocam; do mesmo jeito, o presente dos atores e suas narrações, performances e marcações são o presente ao mesmo tempo em que são o passado, resultado de uma dramaturgia, de um ensaio, de uma direção; coisas passadas presentificadas toda sessão) e passado e futuro (a memória é também um projeto de futuro, as coisas que você lembra ou esquece — ou decide lembrar/ou decide esquecer — formatarão aquilo que virá).

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Também há espaço para pensar o que é verdade e mentira nas narrativas apresentadas. Se quatro pessoas narram quatro variações da mesma memória coletiva, quem está falando a verdade e quem não? Ou: é possível que existam quatro verdades sobre o mesmo fato?

Ou: será que a briga que deu origem a esse espetáculo é mesmo real ou é só um detonador proposto pela dramaturgia? Como provar? No fim das contas, isso importa?

Ou: se uma narrativa é verdade — digamos,o evento de fato aconteceu — mas é dramaturgizada, ficcionalizada, editada, ensaiada, ela ainda é verdade?

Ou: existe verdade? Em tempos de fake news, pós verdade, o que é verdade e o que é outra coisa — e que nome damos a essa outra coisa?

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De volta à neurociência: teoricamente, aquilo que chamamos de presente dura apenas alguns segundos. É o tempo que leva para a informação passar do campo da consciência para o campo da memória (de curto prazo e, mais tarde, de longo prazo).

Tudo o que você leu até agora desse texto já tá na memória. Passado.

Esse próprio texto só existe como memória de um espetáculo. E o próprio espetáculo é memória: memória do texto, memória da marcação, memória do ensaio. E o próprio material ensaiado é memória: memória da pesquisa, memória dos eventos reais.

Tem muito passado envolvendo tudo isso. Tem muito esforço para lembrar de algo — inclusive esforço físico de construção de sinapses, de ativação de áreas específicas do cérebro; construir memória é um esforço concreto.

Pensemos no nosso país, em seus 519 anos. Pensemos em tudo o que há de registro antes desse ano 0: toda a cultura, todos os povos, todas as memórias que existiam aqui — existe um esforço para se lembrar desse(s) algo(s)?

Pensemos em tudo o que houve nesse espaço de tempo de 519 anos: quais esforços foram feitos em função da memória de algo(s) e quais outros esforços foram feitos em função do apagamento de algo(s)?

Pensemos no estudo sobre o Alzheimer que o coletivo faz e na pergunta-chave feita para os entrevistados: o que você não gostaria de esquecer? O que na sua vida é essencial de ser lembrado? O que não pode ser esquecido de jeito nenhum?

E nas memórias coletivas? O que não pode ser esquecido de jeito nenhum, digamos, na história do país? Ou: as memórias do país projetam que futuro para ele?

Kintsugi, 100 Memórias

KINTSUGI, 100 memória

Com o LUME Teatro. Criação Ana Cristina Colla, Emilio García Wehbi, Jesser de Souza, Pedro Kosovski, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini.Direção — Emilio García Wehbi. Dramaturgia — Pedro Kosovski. Elenco — Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini. Desenho Sonoro — Janete El Haouli e José Augusto Mannis. Projeção Acústica de Desenho Sonoro — José Augusto Mannis.Iluminação — Eduardo Albergaria. Orientação Coreográfica — Jussara Miller. Fotografia — Alessandro Soave e Arthur Amaral. Design Gráfico — Arthur Amaral. Administração — Giselle Bastos. Direção de Produção — Cynthia Margareth — Aflorar Cultura. Produção Executiva — Simone Veloso — Aflorar Cultura. Assessoria de Imprensa — Nossa Senhora da Pauta. Realização — Sesc São Paulo. Produção — LUME — Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais — UNICAMP. Duração — 120 minutos. Recomendado para maiores de 16 anos.

Temporada — De 24 de maio a 23 de junho, de quinta-feira a sábado, às 21h e domingo e feriados, às 18h (sessão extra dia 19 de junho, quarta-feira, às 21h).Ingressos — R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia: estudante, servidor de escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência); R$ 9,00 (credencial plena: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes).

SESC AVENIDA PAULISTA
Avenida Paulista, 119, Bela Vista, São Paulo
Fone: (11) 3170–0800

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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