Sobre Julius Caesar — Vidas Paralelas

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readJul 11, 2024

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Poucas vezes eu experimentei tamanha eletricidade quanto numa sala de ensaio. Poucas vezes senti tanto amor, confiança, companheirismo e senso de comunidade quanto no meu coletivo, ensaiando e criando com meus colegas, essas pessoas que eu amo tanto e com quem compartilho meus sonhos. Poucas vezes tbm me meti em quebra-paus tão intensos quanto o das salas de ensaio, com esses arrombados do caralho do meu grupo.

Ah, teatro é mesmo a arte do encontro, né?

Julius Caesar — Vidas Paralelas. Foto: João Maria

Com mais 35 anos de estrada, a Cia dos Atores usa Shakespeare para olhar para si mesma — e para o teatro, e para o fazer artístico. Em cena, uma trupe de atores, junta há mais de trinta e cinco anos, se vê às voltas com a montagem de uma versão de Júlio César, a tragédia shakespeariana. As intrigas palacianas, a sede de poder, a torrente de rancores, as alianças por objetivos, as punhaladas nas costas…tudo vaza do texto original para a sala de ensaios e de lá para a encenação.

As maquinações pra destronar um tirano ganham a mesma dimensão que os esforços para conquistar um papel desejado. Claro, faz sentido: não há nada mais importante para nós, gente do palco, do que esse universo contido entre as paredes da sala de ensaio — o império que se estende até onde o olho alcança é tanto império quanto o tablado onde ensaiamos.

Neste estudo de personagens, a Cia dos Atores olha sobretudo para a humanidade dos quatro membros do elenco: a atriz que se divide entre o sucesso na televisão e sua primeira experiência dirigindo a companhia — e que se sente na obrigação de se provar o tempo todo para o elenco, todos homens —; o ator que volta ao teatro depois de um ano afastado, doente, e que agora precisa do palco para concluir seu processo de cura; o casal que também é colega de grupo e que precisa evitar que a tensão no trabalho vaze para casa. Todos presos no emaranhado de sentimentos que dá bojo às relações tão antigas e tão intensas: o amor, a admiração, o ressentimento, a inveja, o medo, a confiança, o passado que eles compartilham mas que também ameaça soterrá-los a qualquer momento.

Na humanidade do elenco, tudo é contraditório e complementar: o amor e o ressentimento, a admiração e a inveja, a confiança e a desconfiança andam juntos, se retroalimentam, se fundem, às vezes não são nem dois lados da mesma moeda — são a mesma coisa. Da mesma forma, a experiência de estar em grupo e a profunda, inescapável, inexorável solidão estão presentes em todos: estão em grupo, mas também estão sozinhos — ou, pior, às vezes estão cercados.

Julius Caesar — Vidas Paralelas. Foto: João Maria

Claro, há também outro componente importante da humanidade dos personagens: o que eles têm de ridículo, patético, tacanho — imagina só, pessoas que brigam por um personagem, que coisa tosca. Dá pra acreditar que alguns adultos se prestam a isso?

E há um cuidado no modo como a dramaturgia olha para isso que é bonito de ver: sem julgamentos e com a mesma seriedade com a qual olham para as motivações das personagens shakesperianas. É, de fato, patético brigar por um personagem (se você já fez isso, você sabe que é ridículo, assume) mas, ao mesmo tempo, é a coisa mais importante para eles (se você já fez isso, você sabe que não era tão ridículo assim também, né), é uma motivação tão válida quanto a de Lear, Hamlet, Iago, Cássio, Lady Macbeth…

E esse olhar duplo, a noção do ridículo somada à identificação de que isso é da maior importância, só pode vir de alguém que é do teatro, que já se viu às voltas com essa patetice que também é da maior urgência, da maior sensibilidade, que é de uma pulsão de vida essencial à nós. Que bobeira e que lindeza que é fazer teatro.

Julius Caesar — Vidas Paralelas. Foto: João Maria

Há ainda a reflexão sobre outro tipo de ganância em Julius Caesar, do mesmo tipo daquela presente nas tragédias shakesperianas, nas tragédias gregas, e nas tragédias que andamos vendo por aqui.

A sede pelo poder que nos mobiliza com uma força tão imparável, tão voraz, tão destruidora, rumo à saciedade (que nunca virá) deste impulso é um dos assuntos que interessam à Cia dos Atores. Em um país que tem vivenciado convulsões sociais e políticas, cuja democracia esteve em risco, cujas vidas dos cidadãos têm valido menos do que os interesses políticos dos governantes — que riem das mortes, e que as utilizavam como capital político — , onde a polarização mostrou como é fácil galvanizar a população rumo à violência, refletir sobre a facilidade com a qual o ressentimento, a ganância e o ódio nos cegam e nos guiam, é da maior importância.

É interessante essa análise da Cia dos Atores: partir de Shakespeare para falar de si e, ao falar de si, falar do país em que está — afinal, há como fazer teatro sem olhar para o tempo e o onde em que estamos inseridos? E é lindo ver essa análise surgindo da maturidade de mais de 35 anos da companhia, com os atritos, o carinho, a força somada, as histórias individuais que se complementam. Teatro de grupo é foda demais.

(dedicado aos arrombados do meu grupo, que eu amo imensamente)

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado

Julius Caesar — Vidas Paralelas
até 14 de julho de 2024
Quinta, sexta e sábado, às 20h. Domingo, às 18h.
Sesc Consolação — Rua Dr. Vila Nova, 245 — Vila Buarque. São Paulo/SP

Dramaturgia e direção: Gustavo Gasparani
Tradução:
José Francisco Botelho
Elenco:
Cesar Augusto, Gabriel Manita, Gustavo Gasparani, Isio Ghelman, Suzana Nascimento e Tiago Herz.
Direção de produção:
Claudia Marques — Fábrica de Eventos
Cenografia:
Beli Araújo
Figurinos:
Marcelo Olinto
Iluminação:
Ana Luzia De Simoni
Projeções e Vídeos:
Batman Zavareze
Direção musical e trilha sonora composta:
Gabriel Manita
Assistente de direção:
Menelick de Carvalho

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica