Sobre “História do Olho”
Minha relação com o pornô começou na casa de um primo, assistindo escondido a um dos filmes da sua coleção. O termo “filme pornô” me fazia supor que eu devia assisti-lo como um filme comum, do início ao fim, prestando atenção na história, nas atuações etc.
Coincidentemente, os realizadores do filme tinham as mesmas expectativas em relação aos espectadores: com altas aspirações artísticas, o filme era uma espécie de whodunit pornô, um misto de thriller e estudo psicológico dos seus personagens.
O filme começava com o protagonista num espaço escuro, sem saber como foi parar lá. Tentando entender como chegou àquele local, ele puxa pela memória suas últimas lembranças: ele transou com uma mulher numa despedida de solteiro há alguns dias, transou com a secretária na antevéspera, transou (sem muito ânimo) com a esposa na véspera, transou com a vizinha e, plot twist: pegou a esposa transando com seu melhor amigo quando chegou mais cedo do trabalho.
Devastado por ver as duas pessoas que amava e nas quais confiava traindo-o, o protagonista se dá conta de que uma vida de putaria o levou à destruição de seu casamento, de suas amizades, e à completa, inescapável e obliterante solidão.
O protagonista finalmente se dá conta de como chegou àquele ambiente escuro (pense no umbral de A Próxima Vítima com baixo orçamento): desolado por ter desperdiçado sua vida com o sexo, ele decide pôr um fim em seu sofrimento.
Minha relação com o pornô começou com um filme anti-putaria, e eu sempre me divirto com essa anedota: um pornô pró sexo marital, hetero, monogâmico e, provavelmente, apenas para fins reprodutivos e não recreativos. Um pornô mais explicito na sua moral do que nas cenas de sexo: qualquer tipo de relação sexual que desvie do núcleo familiar tradicional levará à uma tristeza tão abissal que a morte é a melhor alternativa.
O fato de eu ter uma vida sexual saudável, de eu me sentir confortável com putaria e de eu seguir explorando meus desejos com meus parceiros depois do pornô moralizante anti-sexo é, pra mim, um lembrete de que nossa pulsão de vida e nosso desejo pelo outro é tão intenso, tão forte, e uma das nossas maiores forças vitais que, mesmo sendo ensinados recorrentemente a temer o sexo que não seja o heteronormativo abençoado pelo matrimônio monogâmico, seguimos sendo seres desejantes, curiosos e exploradores da sexualidade — este delicioso e consensual jeito de explorar a si, ao outro e a soma das partes.
Tem tempo pra mais uma história antes de chegarmos à peça? (embora já estejamos falando da peça, você sabe) Então vamos lá.
Como vários homens gays da minha geração, minha relação com o pornô se deu em duas etapas: primeiro descobri o pornô hetero, e foi ok. Depois, descobri o pornô gay, e foi como se uma peça fundamental do quebra-cabeça da minha identidade tivesse se encaixado e me feito perceber, pela primeira vez com muita definição, a imagem complexa que se formava.
Como vários homens gays da minha geração, o pornô foi a primeira vez em que eu vi dois homens trocando afeto — um tipo de afeto que envolvia correntes, punhos, mijo e, por algum motivo, muito couro.
Não víamos homens interagindo na rua, ou nas músicas, ou na televisão. Se as comédias românticas e os filmes da Disney criaram expectativas afetivas irreais para milhões de pessoas ao longo do século XX, o pornô gay também teve um papel fundamental na construção das nossas subjetividades e afetividades: aprendemos que o sexo é uma das principais formas de interação e socialização entre homens cis que fazem sexo com homens cis.
Eu já trepei com todos meus melhores amigos, e com vários amigos, e com vários colegas (você também faz isso?). Trepei com eles porque o sexo era um jeito de demonstrar carinho, afeto, de mostrar o quanto eu gostava deles — e nada diz “eu te amo e valorizo nossa amizade” melhor do que uma mijada na cara do seu parça, convenhamos.
Sexo, pra mim, sempre foi uma maneira de preencher diversos buracos em nós, objetiva e subjetivamente.
Mas e você? Qual sua relação com o pornô?
A pergunta qual sua relação com o pornô? é uma das questões estruturantes de História do Olho , adaptação de Janaina Leite para o livro homônimo de Georges Bataille.
É uma das perguntas através/ao redor das quais Janaína Leite e o grupo de performers que a acompanha—Lara Duarte, André Medeiros Martins, Armr’Ore Erormray, Carô Calsone, Cusko, Ian Figlioulo, Georgia Vitrilis, Isabel Soares, Lucas Scudellari, Ultra Martini, Vinithekid e Tadzio Veiga — estudam a conexão humana, o desejo, o atraente, o repulsivo, o sagrado, o profano, a pulsão de vida e de morte e a fabulação do amor (e, também: o amor a quê?).
Assim como na história de Bataille, a adaptação de A História do Olho atua sobre esses polos, aparentemente antagônicos, como um pêndulo, indo de um a outro e passando por tudo o que está entre. E, no decorrer da encenação, o pêndulo se torna uma bola de demolição, destruindo um polo, o outro, e tudo o que está entre.
Dos escombros por onde esta bola de demolição passa, tudo se mistura e pode se reconfigurar. Na organização poética da versão cênica de História do Olho, o repulsivo e o atraente são uma coisa só. Como na tourada descrita por Bataille, a vertigem que se sente é só o primeiro passo para a fruição e, surpreendentemente, para a percepção da sutileza e da delicadeza.
A capacidade da sutileza e delicadeza é um dos principais méritos da encenação. No livro de Bataille, aquele que deseja é descrito como uma tocha, e o próprio desejo é descrito como um tipo de fogo que consome tudo o que há em seu caminho e, tendo consumido tudo, não pode fazer outra coisa se não se extinguir — assim, aquele que devota sua vida ao desejo não tem outro destino se não desejar mais e mais e mais até implodir diante do peso do próprio desejo e da insatisfação de nunca vê-lo plenamente saciado.
Na encenação, o desejo aparece pulsando no palco, feroz e convidativo, uma promessa do sublime que vem depois da vertigem. Não só o fogo que nos consome e com o qual nós consumimos, mas o fogo com o qual criamos poesia. Foder e fazer arte são coisas que se fazem na mesma temperatura.
É surpreendente como as cenas com maior potencial de choque, pelo menos pra mim — o fisting e a suspensão —, são também as mais delicadas, e de maior potência poética.
Ao deslocar o fisting do campo do sexo hardcore para o campo do poético, História do Olho fala, surpreendentemente, da delicadeza do encontro, da intimidade, fala sobre acolher e ser acolhido, preencher e ser preenchido, fundir-se, tornar-se uma quimera, habitar lacunas físicas e subjetivas a partir da presença do(s) outro(s), tornar-se uma outra coisa a partir deste encontro.
É uma proeza física da mesma ordem da proeza física da dança contemporânea: acolher um punho ou executar um passo complexo, tudo é uma ação para atingir nova possibilidade de expressão.
A suspensão, me parece, também ocupa este campo.
De um ato imensamente invasivo, que coloca o corpo sob uma intensa carga de tensão, surge um incrível momento de êxtase, arrebatamento, de fricção com o sublime.
Não só pela linda e ritualística preparação (a atenção quase solene daqueles que vão suspender, o carinho e cuidado com o corpo a ser suspenso, tudo tem um caráter litúrgico) , mas pela carga imagética atingida.
O corpo suspenso, voando sobre o espaço é tanto o corpo do touro quanto o corpo do toureiro, corpo desejado e corpo desejante, corpo à mercê e corpo potente. É o corpo ofertado ao sol e o corpo devorado pelos olhos que surpresos/encantados/chocados/fascinados não conseguem não olhar, é como uma pintura de Caravaggio ou o Êxtase de Santa Teresa — aproximando o sagrado e o profano rumo a um arrebatamento transcendental, a carne transverberando o divino.
É foda.
Ao longo das três horas de encenação, o atraente e o repulsivo fluem entre si , com a beleza surgindo exatamente deste trânsito — ainda que, naturalmente, “atraente”, “repulsivo” e “beleza” sejam termos subjetivos, pessoais e intransferíveis em casos assim.
De todo modo, ainda que cada uma das pessoas na plateia tenha limites e sensibilidades únicas, parece consenso de que História do Olho está instalada ali na franja, na ponta da lança, um pouco além do baunilha. Um gosto um pouco mais molhado, salgado, que lembra uma hóstia ou um ovo.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado
Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.__
História do Olho
Até 28/01 I Sáb e dom, 18h I No Teatro de Contêiner
R$ 40,00
Idealização, direção, dramaturgia e performance — Janaina Leite
Dramaturgismo e Assistência de direção — Lara Duarte e André Medeiros Martins
Performers — André Medeiros Martins, Armr’Ore Erormray, Carô Calsone, Cusko, Ian Figlioulo, Georgia Vitrilis, Isabel Soares, Lucas Scudellari, Ultra Martini, Vinithekid e Tadzio Veiga
Composições originais e performance — André Medeiros Martins, Ultra Martini e Vinithekid
Luz — Wagner Antônio
Figurino — Melina Schleder
Preparação Corporal — Lara Duarte
Arranjos e Desenho de Som — Renato Navarro
Produção Musical — Mateus Capelo
Suspensão — Pombo Morcego e performers convidades
Concepção de manequins articulados e assitência cenográfica — Tadzio Veiga
Cenotécnicos — Edson Luna e Wanderley Wagner da Silva
Coordenação de palco — Cusko
Operação de som ao vivo — Vinithekid
Técnico de som — Renato Navarro
Operador de luz — Felipe Tchaça e Aline Sayuri
Colaboradores — Eliane Robert Moraes, Christine Greiner, Biaggio Pecorelli, Bruna Kury, Ediyporn, Beto Profeta, Artur Kon e Rodolfo Valente
Assessoria de Imprensa no Brasil — Frederico Paula — Nossa Senhora da Pauta
Fotos — Cacá Bernardes
Design Gráfico — Sato do Brasil
Mídias Sociais — André Medeiros Martins
Produção — Corpo Rastreado (Ariane Cuminale)
Apoio — Teatro Mars e Centro Cultural da Diversidade
Coprodução — MITsp- Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
Realização — 13° Prêmio Zé Renato de Teatro para a Cidade de São Paulo