Sobre “Hedda Gabler”
Desde que ganhou os palcos, no final do século 19, Hedda Gabler conquistou seu espaço como uma das mais ricas personagens femininas do teatro ocidental.
Mais do que uma anti-heroína, como é comumente definida, Hedda possui uma dimensão trágica que remete aos clássicos gregos — ela quer, afinal, manipular o destino das pessoas ao seu redor, tal qual uma divindade caprichosa, que pagará o preço por sua húbris — e prenuncia uma dimensão psicológica que depois seria um prato cheio para os estudiosos pós-Freud.
Da fricção constante entre suas pulsões de vida (a vontade de liberdade, a libido, a fome voraz de mundo) e de morte (sua violência emocional e física, direcionada aos outros, às coisas, e a si mesma), Hedda Gabler lança ondas de choque que abalam aquilo que está ao seu redor, colocando tudo em movimento (e ruir , é claro, é também um movimento).
Hedda Gabler também pode ser vista como uma personagem que se debate dentro das estruturas opressoras patriarcais vigentes no final do século 19 (e não só lá). Uma personagem que, a partir de sua recusa aos papéis tradicionais de gênero, como a docilidade e a maternidade, demonstra o potencial pleno das mulheres, para além do template imposto pela família, tradição e pátria.
Há também uma outra possibilidade de ler Hedda na montagem do Círculo de Atores: ela pode também ser vista como um estudo sobre a burguesia e seus impactos na democracia e no desenvolvimento social do país. Hedda, afinal, é uma mulher branca, de confortável situação financeira (ainda que às beiras da falta de dinheiro), filha de militar, armamentista, cobiçosa, movida por um senso moral muito particular e contraditório, cujos caprichos impactam diretamente na vida de todos aqueles que ela julga existirem apenas para atender a suas demandas.
Seu tédio, sua cobiça, seu desprezo pelo outro, seu profundo vazio interior, seu rancor, sua incapacidade de lidar com os próprios problemas, mascarados pela sua necessidade perpétua de movimento e distração, tudo isso também pode ser lido como um avatar das figuras que têm se mostrado cada vez mais proeminentes desde 2013 (e muito, muito antes).
É interessante ver como as situações desenhadas por um norueguês, há mais de 140 anos, ganham novas leituras ao ser levadas a um palco latino-americano que ainda lida com os embates de classe, raça e gênero e seu histórico de colônia. Claro, isso é óbvio: toda encenação comenta, direta, ou indiretamente, o contexto em que é realizada. Mas é muito pertinente a construção de algumas imagens a partir da orquestração de Clara Carvalho.
É terrível ver, em cena, uma mulher branca e burguesa, fascinada por armas e por seu histórico familiar, apontando uma pistola para um homem negro.
É terrível porque é uma imagem que está no palco, mas também nas páginas dos jornais. Também está, em alguma medida, nas eleições de 2010, 2014, 2018, 2022, em 08 de janeiro de 2023, e estará em 2026. É terrível porque também remonta a 06 de janeiro de 2021, e porque remonta àquilo que já sabemos: o vazio, a ganância, a falta de empatia e o excesso de privilégios são ingredientes básicos para uma tragédia da maior magnitude às vésperas de acontecer (ou que segue acontecendo, desde 1890, desde 1500 ou de 2016 ou de…)
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Hedda Gabler
Texto: Henrik Ibsen. Produção: Rosalie Rahal Haddad. Tradução e Direção: Clara Carvalho.Assistentes de Direção: Mariana Muniz e Thiago Ledier. Elenco: Karen Coelho, Guilherme Gorski, Carlos de Niggro, Chris Couto, Nábia Villela, Mariana Leme e Sergio Mastropasqua. Trilha Original e Música ao Vivo: Gregory Slivar. Cenários: Chris Aizner. Figurinos: Marichilene Artisevskis. Costureira: Judite Lima. Cenotecnia: Alicio Silva. Produção De Objetos: Jorge Luiz Alves. Luz: Nicolas Caratori. Operação de Luz: Luisa Silva. Preparação Vocal: Babaya Morais. Direção Técnica e Operação de Som: Valdilho Oliveira. Fotografia: Ronaldo Gutierrez. Visagismo: Marcos Padilha. Maquiagem: Ale Toledo. Design Gráfico: Rafael Oliveira. Registro e edição da montagem: Ícarus Filmes. Produção: SM Arte e Cultura. Direção de Produção: Selene Marinho. Coordenação de Produção: Sergio Mastropasqua. Produção Executiva: André Roman/Teatro de Jardim. Direção de Palco: Henrique Pina. Contrarregra: André di Peroli. Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes. Gerenciamento de Mídias Sociais: Sergio Mastropasqua, Selene Marinho e Luisa Silva. Realização: Círculo de Atores.
Até 25 de agosto. Sextas e sábados, às 20h e domingos, às 18h.
Classificação: 14 anos. Duração: 110 minutos.
Ingressos: R$ 80,00 (inteira) R$ 40,00 (meia)
Auditório do MASP — Av. Paulista, 1578