Sobre “Guará Vermelha”

Tudo, Menos Uma Crítica
7 min readApr 4, 2024

Nós vamos morrer.

Importante começar o texto assim: nós vamos morrer. Mais em breve do que gostaríamos. Sem viver tudo o que gostaríamos. Sem ter tido todo o tempo que gostaríamos, nós vamos morrer. Então talvez você queira investir o tempo que você tem em outra coisa que não seja ler esse texto — tomar um café, sair com os amigos, ouvir uma música, assar um bolo, olhar o céu, transar, sei lá.

É importante falar da morte porque, em muitos aspectos, Guará Vermelha é sobre a morte. Sobre as diversas mortes: a morte pela ignorância, a morte pela fome, a morte pelo desamor, a morte pelo preconceito, a morte pela solidão. Sobre as mortes que não são o fim absoluto da vida, mas o aniquilamento do potencial da vida plena. As mortes que desnutrem, desidratam, ressecam a vida, matando quem poderíamos ser.

É sobre a morte da humanidade que temos em nós, em prol do produtivismo, do capitalismo, do lucro. Aquela morte que aniquila algo em nós e deixa outra coisa — mais seca, mais fria, mais automatizada, mais insensível, mais cansada, menos viva — entrar no lugar.

E é também sobre empurrar a morte pra depois.

E é também sobre o brinquedo.

Porque é isso que a Cia do Tijolo faz: desenvolve um brinquedo com o qual se brinca em grupo — elenco e plateia, sem muita distinção ou muita fronteira entre o lá e o cá. Um brinquedo que só existe quando disposto em bando, no centro da roda e ao redor dela, e que só existe quando brincado coletivamente.

Como pular corda, como jogar taco, essas brincadeiras que são menos sobre o objeto e mais sobre as pessoas que o manipulam — e a felicidade que surge ao brincar em bando.

E a felicidade que surge ao investir tempo no prazer coletivo.

Guará Vermelha. Foto: Alécio César

Do modo como a Tijolo encena Guará Vermelha, baseada no livro O Vôo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, o tempo está em foco. Claro, isso estava no bojo do livro — a história toda se passa em breves 23 dias; Irene está prestes a morrer, tendo que equilibrar o tempo de vida que lhe resta com o tempo que precisa dedicar ao trabalho, para sustentar a si e ao filho; Rosálio equilibra o tempo que precisa dedicar ao trabalho com o tempo que pode investir em estudar, em ler, em estar com a mulher que lhe apresenta novas possibilidades de vida. É sobre o tempo perdido diariamente e o tempo experenciado de fato, seja nos braços da pessoa querida, seja mergulhando num livro.

O que já estava presente no livro ganha novas dimensões na encenação. O tempo, nos seus aspectos sociais e políticos, está em discussão e, a partir dele, os temas se seguem: questões de gênero, de raça, de classe, de geografia são tensionados pelo elenco, que costura depoimentos à história de Irene e Rosálio. A observação do capitalismo tardio, extrativista e hiper-produtivista surge no palco, refletindo sobre o absurdo da situação.

Trocar tempo de vida no trabalho para conseguir um pouco de dinheiro para viver, enquanto aqueles que estão do outro lado acumulam, graças a essa exploração, mais dinheiro do que poderão gastar em seu tempo de vida.

E assim, a morte se instala e é quase sempre segunda-feira, e pouco tempo nos resta, e às vezes o sono ajuda, e outras vezes, como disse Manfred Lewin, “a noite existe para mais que o sono, e é por isso, meu amor, que tantas vezes ficamos acordados”.

Guará Vermelha. Foto: Alécio César

Quando eu era criança minha mãe disfarçava o gosto da amoxicilina que o médico receitava com uma colherada de leite condensado, o doce e o amargo disputando o espaço na minha boca.

Lembrei disso vendo a peça, o agridoce presente em cada fala, cada nota das músicas, cada riso que vinha entre dois socos no estômago (ou cada soco que vinha entre dois risos).

É quase sempre segunda-feira, eles nos lembram, e isso já nos lembra de toda a urgência da vida que rosna lá fora (eu tenho tantas planilhas pra preencher, muitos e-mails pra mandar, preciso me preparar para o mestrado mesmo me achando velho demais pro mestrado, preciso montar a agenda da semana para encaixar os freelas sem atrapalhar o trabalho fixo, preciso terminar esse texto, e faz quase dois anos desde que eu fui pra praia a passeio, será que eu vou conseguir voltar lá logo?). E também nos dizem, de tempos em tempos, que “aqui você tem tempo”, numa espécie de mantra ou encantamento pra fazer o tempo parar — ou, talvez, pra fazer a gente dar uma parada.

Rosálio e Irene estão lá nos lembrando que é quase segunda feira, é quase morte, mas enquanto ainda não é, talvez dê tempo de brincar um pouco. Como Sheherazade que conta histórias para adiar sua própria morte, a Tijolo conta essa história pra empurrar a morte um pouco mais pra lá. Monta uma peça pra sensibilizar essas partes nossas que o capitalismo mata pouco a pouco.

Guará Vermelha. Foto: Alécio César

Guará Vermelha segue a pesquisa recorrente da Cia do Tijolo, que une embasamento e posicionamento político inconfundíveis com um teatro altamente relacional. Em Cantata Para Um Bastidor de Utopias, o grupo articulava, desde a primeiríssima cena (convidar a plateia a ajudar a montar o cenário) , uma estrutura que atingiria seu ápice no segundo ato, quase duas horas depois (repartir o pão e ouvir um depoimento). Desde a entrada do público, criava uma estrutura onde a plateia era convidada (mesmo que ainda não soubesse disso) a estar em cena o tempo todo. Em O Avesso do Claustro, na cena do lava-pés, a interação entre Dinho Lima Flor e a plateia sintetizava não só a visão de mundo de Dom Helder Câmara quanto a compreensão de teatro da Tijolo — e a cena só acontecia porque o público, desde o começo, estava integrado nessa estrutura cênica que a Tijolo propunha.

Em Guará, em uma música específica, as pessoas do elenco abraçam algumas pessoas da plateia. É bastante simples, mas ao mesmo tempo muito arriscado.

Qualquer interação com a plateia já carrega em si um risco: pode não dar certo. Pode ser constrangedor. Pode conduzir a peça por caminhos não desejados. Abraçar alguém, então, me parece ainda pior: pode ser constrangedor. Pode não ser verdadeiro. Pode ser cafona.

Mas do jeito que eles fazem, não é. E só funciona porque eles sabem que essa cena virá, então se preparam ao longo de todo o espetáculo para ela, jogando com o público, incluindo-o na cena, convidando-o pra estar cada vez mais perto. Neste sentido, o relacional é tão técnico quando um belting num musical, ou a preparação para determinado passo num espetáculo de dança.

Também funciona porque a Tijolo parece de fato interessada no público. Eles construíram, como eles dizem, um brinquedo, que só faz sentido quando brincado em conjunto.

Guará Vermelha. Foto: Alécio César

Fiquei muito emocionado vendo Guará Vermelha. Fiquei emocionado por ver esse teatro que é festa, que é brinquedo, que sabe que não nasceu na Grécia, que é feito tão junto com a plateia porque as dores e os antídotos de elenco e público são os mesmos. Esse teatro que olha pras desigualdades com criticidade, que comenta o mundo no qual está inserido com uma indignação e uma vontade de mudá-lo (coisa essencial pra quem é das artes ou da educação, eu acho), mas que também vê a festa, o riso e o abraço como instrumentos revolucionários. Esse teatro que olha pra pedra e vê poesia.

Logo mais é segunda. Mas ainda tem tempo.

__Guará Vermelha
Esteve em cartaz de 14 a 31 de março no CCSP.
Direção geral —
Dinho Lima Flor. Direção musical — William Guedes. Direção de produção — Suelen Garcez. Concepção do projeto — Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Karen Menatti. Elenco: Atuadores — Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Vera Lamy, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, Mayara Baptista, Ana Maria Carvalho, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor. Musicistas — Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes, Leandro Goulart. Boneca gigante: Victor Mourão. Dramaturgia: Fabiana Vasconcelos e Cia do Tijolo. Composições originais: Jonathan Silva, Leandro Medina, William Guedes e Nanda Guedes. Iluminadora: Laiza Menegassi. Técnico de Luz: Rafael Araújo. Técnicos de Som: Leandro Simões e Gabriel Milani. Figurino: Silvana Marcondes e Cia do Tijolo. Assistente de Figurino: Carol Petrucci. Cenário: Andreas Guimarães e Cia do Tijolo. Cenotécnico: Douglas Vendramini. Orientação de movimento: Gabriel Küster. Design gráfico: Fábio Viana. Fotos: Alécio César. Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini. Assistente de produção: Tatiane Garcez. Contrarregragem: João Bertolai e Douglas Vendramini.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado

Para mais informações sobre o projeto, entre em contato.__

--

--

Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica