Sobre “Guará Vermelha”
Nós vamos morrer.
Importante começar o texto assim: nós vamos morrer. Mais em breve do que gostaríamos. Sem viver tudo o que gostaríamos. Sem ter tido todo o tempo que gostaríamos, nós vamos morrer. Então talvez você queira investir o tempo que você tem em outra coisa que não seja ler esse texto — tomar um café, sair com os amigos, ouvir uma música, assar um bolo, olhar o céu, transar, sei lá.
É importante falar da morte porque, em muitos aspectos, Guará Vermelha é sobre a morte. Sobre as diversas mortes: a morte pela ignorância, a morte pela fome, a morte pelo desamor, a morte pelo preconceito, a morte pela solidão. Sobre as mortes que não são o fim absoluto da vida, mas o aniquilamento do potencial da vida plena. As mortes que desnutrem, desidratam, ressecam a vida, matando quem poderíamos ser.
É sobre a morte da humanidade que temos em nós, em prol do produtivismo, do capitalismo, do lucro. Aquela morte que aniquila algo em nós e deixa outra coisa — mais seca, mais fria, mais automatizada, mais insensível, mais cansada, menos viva — entrar no lugar.
E é também sobre empurrar a morte pra depois.
E é também sobre o brinquedo.
Porque é isso que a Cia do Tijolo faz: desenvolve um brinquedo com o qual se brinca em grupo — elenco e plateia, sem muita distinção ou muita fronteira entre o lá e o cá. Um brinquedo que só existe quando disposto em bando, no centro da roda e ao redor dela, e que só existe quando brincado coletivamente.
Como pular corda, como jogar taco, essas brincadeiras que são menos sobre o objeto e mais sobre as pessoas que o manipulam — e a felicidade que surge ao brincar em bando.
E a felicidade que surge ao investir tempo no prazer coletivo.
Do modo como a Tijolo encena Guará Vermelha, baseada no livro O Vôo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, o tempo está em foco. Claro, isso estava no bojo do livro — a história toda se passa em breves 23 dias; Irene está prestes a morrer, tendo que equilibrar o tempo de vida que lhe resta com o tempo que precisa dedicar ao trabalho, para sustentar a si e ao filho; Rosálio equilibra o tempo que precisa dedicar ao trabalho com o tempo que pode investir em estudar, em ler, em estar com a mulher que lhe apresenta novas possibilidades de vida. É sobre o tempo perdido diariamente e o tempo experenciado de fato, seja nos braços da pessoa querida, seja mergulhando num livro.
O que já estava presente no livro ganha novas dimensões na encenação. O tempo, nos seus aspectos sociais e políticos, está em discussão e, a partir dele, os temas se seguem: questões de gênero, de raça, de classe, de geografia são tensionados pelo elenco, que costura depoimentos à história de Irene e Rosálio. A observação do capitalismo tardio, extrativista e hiper-produtivista surge no palco, refletindo sobre o absurdo da situação.
Trocar tempo de vida no trabalho para conseguir um pouco de dinheiro para viver, enquanto aqueles que estão do outro lado acumulam, graças a essa exploração, mais dinheiro do que poderão gastar em seu tempo de vida.
E assim, a morte se instala e é quase sempre segunda-feira, e pouco tempo nos resta, e às vezes o sono ajuda, e outras vezes, como disse Manfred Lewin, “a noite existe para mais que o sono, e é por isso, meu amor, que tantas vezes ficamos acordados”.
Quando eu era criança minha mãe disfarçava o gosto da amoxicilina que o médico receitava com uma colherada de leite condensado, o doce e o amargo disputando o espaço na minha boca.
Lembrei disso vendo a peça, o agridoce presente em cada fala, cada nota das músicas, cada riso que vinha entre dois socos no estômago (ou cada soco que vinha entre dois risos).
É quase sempre segunda-feira, eles nos lembram, e isso já nos lembra de toda a urgência da vida que rosna lá fora (eu tenho tantas planilhas pra preencher, muitos e-mails pra mandar, preciso me preparar para o mestrado mesmo me achando velho demais pro mestrado, preciso montar a agenda da semana para encaixar os freelas sem atrapalhar o trabalho fixo, preciso terminar esse texto, e faz quase dois anos desde que eu fui pra praia a passeio, será que eu vou conseguir voltar lá logo?). E também nos dizem, de tempos em tempos, que “aqui você tem tempo”, numa espécie de mantra ou encantamento pra fazer o tempo parar — ou, talvez, pra fazer a gente dar uma parada.
Rosálio e Irene estão lá nos lembrando que é quase segunda feira, é quase morte, mas enquanto ainda não é, talvez dê tempo de brincar um pouco. Como Sheherazade que conta histórias para adiar sua própria morte, a Tijolo conta essa história pra empurrar a morte um pouco mais pra lá. Monta uma peça pra sensibilizar essas partes nossas que o capitalismo mata pouco a pouco.
Guará Vermelha segue a pesquisa recorrente da Cia do Tijolo, que une embasamento e posicionamento político inconfundíveis com um teatro altamente relacional. Em Cantata Para Um Bastidor de Utopias, o grupo articulava, desde a primeiríssima cena (convidar a plateia a ajudar a montar o cenário) , uma estrutura que atingiria seu ápice no segundo ato, quase duas horas depois (repartir o pão e ouvir um depoimento). Desde a entrada do público, criava uma estrutura onde a plateia era convidada (mesmo que ainda não soubesse disso) a estar em cena o tempo todo. Em O Avesso do Claustro, na cena do lava-pés, a interação entre Dinho Lima Flor e a plateia sintetizava não só a visão de mundo de Dom Helder Câmara quanto a compreensão de teatro da Tijolo — e a cena só acontecia porque o público, desde o começo, estava integrado nessa estrutura cênica que a Tijolo propunha.
Em Guará, em uma música específica, as pessoas do elenco abraçam algumas pessoas da plateia. É bastante simples, mas ao mesmo tempo muito arriscado.
Qualquer interação com a plateia já carrega em si um risco: pode não dar certo. Pode ser constrangedor. Pode conduzir a peça por caminhos não desejados. Abraçar alguém, então, me parece ainda pior: pode ser constrangedor. Pode não ser verdadeiro. Pode ser cafona.
Mas do jeito que eles fazem, não é. E só funciona porque eles sabem que essa cena virá, então se preparam ao longo de todo o espetáculo para ela, jogando com o público, incluindo-o na cena, convidando-o pra estar cada vez mais perto. Neste sentido, o relacional é tão técnico quando um belting num musical, ou a preparação para determinado passo num espetáculo de dança.
Também funciona porque a Tijolo parece de fato interessada no público. Eles construíram, como eles dizem, um brinquedo, que só faz sentido quando brincado em conjunto.
Fiquei muito emocionado vendo Guará Vermelha. Fiquei emocionado por ver esse teatro que é festa, que é brinquedo, que sabe que não nasceu na Grécia, que é feito tão junto com a plateia porque as dores e os antídotos de elenco e público são os mesmos. Esse teatro que olha pras desigualdades com criticidade, que comenta o mundo no qual está inserido com uma indignação e uma vontade de mudá-lo (coisa essencial pra quem é das artes ou da educação, eu acho), mas que também vê a festa, o riso e o abraço como instrumentos revolucionários. Esse teatro que olha pra pedra e vê poesia.
Logo mais é segunda. Mas ainda tem tempo.
__Guará Vermelha
Esteve em cartaz de 14 a 31 de março no CCSP.
Direção geral — Dinho Lima Flor. Direção musical — William Guedes. Direção de produção — Suelen Garcez. Concepção do projeto — Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Karen Menatti. Elenco: Atuadores — Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Vera Lamy, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, Mayara Baptista, Ana Maria Carvalho, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor. Musicistas — Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes, Leandro Goulart. Boneca gigante: Victor Mourão. Dramaturgia: Fabiana Vasconcelos e Cia do Tijolo. Composições originais: Jonathan Silva, Leandro Medina, William Guedes e Nanda Guedes. Iluminadora: Laiza Menegassi. Técnico de Luz: Rafael Araújo. Técnicos de Som: Leandro Simões e Gabriel Milani. Figurino: Silvana Marcondes e Cia do Tijolo. Assistente de Figurino: Carol Petrucci. Cenário: Andreas Guimarães e Cia do Tijolo. Cenotécnico: Douglas Vendramini. Orientação de movimento: Gabriel Küster. Design gráfico: Fábio Viana. Fotos: Alécio César. Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini. Assistente de produção: Tatiane Garcez. Contrarregragem: João Bertolai e Douglas Vendramini.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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