Sobre Fracassadas BR

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readOct 16, 2023
Fracassadas BR. Foto: Bob Sousa

Em seu livro, A Arte Queer do Fracasso, Jack Halberstan argumenta que nós, pessoas LGBTQIAP+ somos fracassos inescapáveis, se comparadas ao template heterocisnormativo posicionado ao centro das estruturas de poder que organizam a sociedade contemporânea.

Somos completamente incapazes, escreve ele, de cumprir os requisitos mínimos para performar de modo satisfatório os papeis de gênero e sexualidade esperados de indivíduos pertencentes à sociedade, de modo que há, em nós — no modo como nos vestimos, agimos, falamos, existimos, nos relacionamos etc — a marca indelével do fracasso a partir da perspectiva heterocisnormativa.

Halberstan festeja este fracasso. Afinal, diz ele, não somos nós que fracassamos: é o heterociscentrismo que é tão excludente, tão limitado, tão padronizador que é incapaz de conceber qualquer existência que não seja uma cópia fiel de si mesmo. Ou, pelo menos, é incapaz de conceber qualquer existência que, se não uma cópia fiel, seja uma cópia com pouca variação sobre o tema principal, e que persiga ininterruptamente o ideal etéreo difundido pelas estruturas de comunicação que sedimentam no imaginário o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, aniquilando qualquer individualidade em busca de um “ser” padronizado e pasteurizado.

Ao assumir que jamais chegaremos sequer perto dos centros de poder desta estrutura, nem jamais alcançaremos (e nem desejamos) o ideal intangível difundido, conseguimos, porém, ver essa estrutura de fora, com todos seus vernizes descascados, suas rachaduras e falências. Podemos não só ver os potenciais fracassos nesta estrutura como podemos usar o nosso próprio fracasso em participar desta roda como estratégia para erodí-la e destruí-la, abrindo espaço para outras existências que se emancipem deste padrão.

E podemos, finalmente, erodir a própria noção de sucesso, nesta sociedade individualista e meritocrática, que insiste em ver o sucesso e o fracasso como resultado de ações individuais de quem trabalha ou não enquanto eles dormem, e não como resultado de uma máquina de acúmulo de capital social, político e financeiro que beneficia poucos indivíduos, às custas de todo o resto do mundo.

Fracassadas BR, espetáculo da A Coletiva de Teatro em cartaz atualmente no Tusp Butantã, bebe da fonte de Halberstan e inclui um fator importante à discussão: fala a partir de uma perspectiva latinoamericana.

Costurando fictício e real e utilizando o funk, a quebrada e a cultura ballroom como alicerces para uma nova comunidade proposta, para onde podemos fugir do sol que nunca se põe e da máquina de moer gente, Fracassadas BR é uma celebração desta existência possível.

É uma espécie de planta-baixa para o futuro, uma investigação estética, temática e poética queerfuturista que celebra o palco-plateia como um jeito de estar junto e, assim, construir alternativas.

Em determinado momento da sessão que eu assisti, alguém da equipe criativa perguntou à plateia quantas vezes nós já tínhamos visto um elenco e técnica que reunisse tantas pessoas trans — e o quão histórico isso era. De fato, é.

Ao observar que, de fato, uma ficha técnica majoritariamente LGBTQIAP+ é um marco histórico, Fracassadas BR faz duas coisas: comenta, ainda que sutilmente, o absurdo de isso ser algo disruptivo, em pleno 2023, e se insere como uma espécie de farol para esse futuro desejado: fortalece o costume de termos fichas técnicas que não sejam majoritariamente heterocisnormativas. Erode, a seu modo, as estruturas vigentes.

Fracassadas BR beneficia-se de sua equipe criativa, tornando-se, assim, única em sua temática, estética, realização e discurso: discorre sobre assuntos como corpo, família, pertencimento, afeto, trabalho, renda, história, sobrevivência, desejo, utopia, medo, entre outros, a partir de uma perspectiva que não a hetero-cis-hegemônica.

Elabora seus argumentos por outra lógica, expõe seus medos e conflitos a partir de outras origens, exibe uma estética que demanda novas sensibilidades e, assim, instaura sua celebração como tecnologia de defesa e ataque — celebrando estas vivências, as torna mais fortes, mais poderosas (e se torna poderosa por meio delas); celebrando estas vivências, alarga o horizonte do imaginário, povoando-o com outros modos de ser/existir no mundo; celebrando estas vivências, empalidece o sistema heterocisnormativo, causa um curto-circuito, mesmo que temporário, nos mecanismos de manutenção da estrutura.

Não se trata de propor um novo centro de poder — mantendo as mesmas estruturas, apenas realocando centro e periferia mas fazendo a velha roda girar do mesmo jeito — mas de emancipar-se da ideia de ser e estar pautada na heterocisnormatividade meritocrata; trata-se de celebrar estéticas outras, sons outros, corpos outros, afetos outros, visões de mundo outras. Levar isso ao palco como quem usa o palco como plataforma de lançamento: levar isso ao palco para que vaze para fora dele.

Falando sobre as pessoas que precisam fugir do sol que nunca se põe e que buscam guarida numa boate desativada, Fracassadas BR é tanto refúgio quanto QG: um ponto de encontro para planejar o futuro, sensibilizar os ouvidos e expandir as estéticas, repensar as potências do corpo, exercitar as possibilidades criativas (a dança, a poesia, as gírias, etc, etc, etc) e lembrar que tudo isso prepara o chão para algo que ainda será construído.

Fracassadas BR. Foto: Bob Sousa

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado

Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.

Direção e dramaturgia: Ave Terrena e Ymoirá Micall
Direção de movimento: Zaila
Direção musical: Malka Julieta
Operação de som e Assistente de sonoplastia: Bibi de Bibi
Iluminação e Operação de luz: Felipe Fly
Cenografia: Su Martins
Figurino: Kyra Reis
Assistência de Figurino: Flora Babylon
Costureiro: Luã Ayo Ayana
Preparação vocal: Palomaris
Instalação de vídeo, Captação e Montagem: Cabaça Realiza
Fotos de processo: Anali Dupré
Textos: criação colaborativa
Participações especiais: Andrei Roque | Beatriz Gonçalves | Dama Blackout | Deusa de Souza | Draken Maciel | Elloy Queiroz | Emanuelli Silva | Gael Mariano | Gabrielly Pizatto | Gustavo Barbosa| Larissa Nascimento | Leonardo Bartolomeu | Lucca Dantas | Luka Aron |Pedro Henrique Dias | Riven Oliveira | Scarlet Lee | Victoria Alves | Wiliam Fenício | Yandra Rodrigues
Idealização: Barbara Victoria, Lucas Madureira, Rand Barbosa e Victoria Lins
Produção: Corpo Rastreado — Gabs Ambròzia e Julia Tavares
Produção Executiva: A Coletiva de Teatro

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica