Sobre “Feitiço de Soma”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readFeb 6, 2024
Feitiço de Soma. Foto: Noah Mancini

Nos últimos meses, tenho me referido muito ao espaço cênico como um espaço mágico. Não é uma definição inédita, nem revolucionária, mas é uma definição que muito tem me agradado ultimamente.

A criação de um espaço simbólico, ritualístico e extra cotidiano, de comunhão, onde gestos e palavras intencionais conjuram imagens, evocam sensações, objetivam resultados… isso tudo tem a ver com um encantamento ou com uma encenação.

Existem feitiços para esquecer, feitiços para revelar, feitiços para alterar a percepção sobre algo e Feitiço de Soma, espetáculo da Rainha Kong que esteve em cartaz no TUSP Maria Antônia brinca com essa ambivalência.

Feitiço de Soma. Foto: Noah Mancini

Em cena, uma palestra-performance traça, em alguma medida, a história do vírus HIV, tanto no ocidente quanto no corpo de Aleph Antialeph, que assina a dramaturgia fortemente documental.

“Traça, em alguma medida, a história” porque a dramaturgia questiona os cânones da história, a começar por questionar a noção de “paciente zero”, por investigar o que vem antes do zero, por perguntar quem contabiliza e por quê contabiliza — para mapear? para acusar? para traçar um perfil? para construir uma narrativa? para definir um “outro”, oposto ao “eu”? — por desconfiar da narrativa oficial e das tecnologias de controle advindas dela.

Na palestra-performance, a história é contada com mais pontos de interrogação do que pontos finais, e com lacunas cavadas através de palavras, para que o público se implique no seu preenchimento.

A história oficial é estilhaçada, como o avião da Canada AirLines, sua caixa preta é exposta e estudada, e entre os fragmentos, novas histórias, novas perspectivas e novas sensibilidades se somam, delineando um panorama mais complexo, contra-hegemônico.

A proposta de Feitiço de Soma, porém, é escorrer para além disso, vazar do campo da racionalidade para o da subjetividade encantatória e, neste trânsito, implicar o público no bruxedo.

Feitiço de Soma. Foto: Noah Mancini

Em dado momento, Aleph Antialeph segura um refletor como quem segura uma bazuca ou como quem sustenta um farol. Na execução do feitiço, é importante definir este novo terreno, este continente, esta universalidade somática que dilui a noção de “eu” e “outro” a partir do questionamento “e se o HIV habitasse todos os corpos?”.

Quais respostas, quais políticas públicas, quais imaginários, quais manifestações artísticas, quais afetos, quais possibilidades de sociedades surgiriam se todos, todas e todes convivessem com o HIV?

Há uma pegadinha na pergunta de Feitiço de Soma porque, afinal, não existe um “e se?”. Todos já convivemos com o HIV, se não nos nossos próprios corpos, nos corpos de amigos, conhecidos, no corpo da pessoa ao meu lado no ônibus, ou no trabalho, ou que eu beijo. Existe nos corpos sem que eu jamais saiba, pois não existe um apenas um “outro” que pode tê-lo.

Se a narrativa hegemônica nos mente, dizendo que só porta o HIV quem é não-branco e não-heteronormativo, basta olhar com atenção para se dar conta de que são muitas as pessoas — heteros, bis, pans, homossexiais, cis ou trans, homens, mulheres ou pessoas não binárias — vivendo com HIV.

Ênfase, claro, em vivendo — outro verbo importante de reforçar, para contradizer o pânico que insiste em ecoar, desde a década de 1980, de que trata-se de uma sentença de morte.

Em muitas culturas, diz-se que existem feitiços que alteram a percepção de alguém sobre algo. É desta ordem o Feitiço de Soma: desencantar os olhos da plateia que, talvez, ainda estejam amaldiçoados pelo estigma e a desinformação que tem atravessado as décadas, e fazê-los ver sob novas luzes (vermelhas, de um refletor-bazuca) questões que estão postas, há muito tempo, no meio de todos nós.

Feitiço de Soma. Foto: Noah Mancini

Atuação — Nãovenhasemrosto e Aleph Antialeph
Dramaturgia — Aleph Antialeph
Direção e Encenação — Vitinho Rodrigues e Jaoa de Mello
Preparação Corporal — Helena Agalenéa
Iluminação — Felipe Tchaça
Sonoplastia — Nãovenhasemrosto
Figurino — Nilo Mendes Cavalcanti
Cenografia — Victor Paula
Assistente de Cenografia — Rey Silva
Contrarregra — Nata da Sociedade
Baterista — Venus Garland
Baixista — Helena Menezes
Designer Gráfico [Identidade Visual] — Samuel Alves de Jesus
Fotografia [Identidade Visual] — Pedro Jorge Afrop
Registro Fotográfico e Fílmico da Peça — Noah Mancini
Vídeo Streaming — Vinicius Feitoza
Mediação dos Debates Públicos — Pisci Bruja
Assessoria de Imprensa — Márcia Marques (Canal Aberto)
Produção — Corpo Rastreado — Gabs Ambròzia

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica