Sobre “Fauna”
No primeiro grupo de teatro do qual eu fiz parte, há uns bons doze anos, a gente tinha uma pesquisa recorrente que era o do lá em casa. Sabe, aquela estética despojada (mas não largada), sem aquela empostação de voz que a gente aprende a associar ao teatro do século XIX (embora estivéssemos na Guarulhos de 2007, essa ainda era a regra), sem aquela separação nítida entre palco e plateia, pensando em possibilidades contemporâneas de incluir quem assiste no jogo. Nada muito cênico, pomposo, teatral (no mal sentido da palavra), mas de boa, como se estivéssemos lá em casa.
Pois bem, Fauna, novo trabalho do Quatroloscinco — Teatro do Comum, chamado pelo próprio coletivo de peça-conversa, me lembrou um pouco esse rolê. Um olhar desatento sobre o espetáculo poderia fazer o observador pensar que se trata de algo improvisado, construído a partir do zero no dia, dependendo da participação da platéia para acontecer como A ou como B ou C.
Na verdade, o interessante é perceber como o Quatroloscinco chegou onde chegou, borrando tanto os limites entre palco e platéia, emissor e receptor, observador e observado, que Fauna parece simples, parece fácil de ser feito.
Não necessariamente. Na verdade,a aparente simplicidade só demonstra o apuro técnico do coletivo, a desenvoltura deles em dominar a cena e os mecanismos teatrais de tal modo que parece sem esforço — quando, na verdade, é calculado, planejado e estruturado.
É interessante notar como a dramaturgia de Assis Benevenuto e Marcos Coletta (ambos também em cena) possui uma estrutura bastante bem delineada, elaborando estratégias e construindo artifícios para a participação da platéia, de modo que todos, não só os dois, sejam os atuantes no espetáculo. Ao mesmo tempo, há uma linha central, uma sequência de ideias a serem apresentadas e discutidas, uma estrutura que dá suporte ao espetáculo, independente da participação dos espectadores da noite — embora Fauna ganhe ainda mais força a partir da interferência externa.
Um bom exemplo é a brincadeira de imaginar a história dos donos dos sapatos dispostos no palco: Benevenuto e Coletta começam, depois passam a bola para a platéia com tanta graça que o convite é quase irrecusável. A sequência é interessante: primeiro eles, depois nós, como se eles apresentassem as regras e nós brincássemos em seguida; o tom também é importante: eles não te chamam pra cena (“venha, espectador, é seu grande momento de brilhar”), mas mais convidam você a participar da conversa, tipo numa mesa de bar, tipo lá em casa.
Não se trata, contudo, se um espetáculo acolhedor onde todo mundo é protegido, todo mundo é acarinhado, todo mundo é lambido pelo elenco e direção. Tem uma cota de desconforto ter os olhares atraídos até você, é sempre mais desconfortável não haver a proteção da quarta parede porque assim você também é visível. Tem outra cota de desconforto em ter que tirar os sapatos ao entrar na sala de apresentação (Porra, pra que eu preciso fazer isso?; Putz, eu não tô com uma meia boa hoje; Isso não é meio invasivo demais?; Será que tem problema eu avisar pros caras que eu tenho TOC e fico mal em ficar descalço?; Caralho, como eu vou achar meu tênis depois, nessa bagunça toda?). Mas é interessante ver como a direção de Italo Laureano e Rejane Faria e a presença de Benevenuto e Coletta administram e negociam essa alternância de tensões: ora tudo é muito acolhedor, ora há um elemento de estranhamento, ora você está desestabilizado.
É bonito ver as imagens propostas: os calçados que representam os mortos uma hora, em outra remetem ao hábito dos moleques de pendurarem os tênis nos fios de alta tensão e em outra nos fazem pensar em consumo, capital, indústria da moda, preconceitos… O blackout lá pelo final do espetáculo também suscita outras imagens, outras possibilidades de perceber não só outro mas também o espaço.
Evocando a ideia da finitude (do indivíduo e do ser humano como espécie) e transitando por assuntos como violência, memória e desejos, me parece que Fauna também fala de encontro, de comunhão, de vida, e do papel do evento teatral nisso tudo.
FAUNA — Estreia dia 15 de fevereiro, sexta-feira, às 21h30, no Espaço Cênico do Sesc Pompeia (pré-estreia dia 14 de fevereiro, quinta-feira, às 21h30). Com Quatroloscinco — Teatro do Comum. Direção — Italo Laureano. Assistência de Direção — Rejane Faria. Texto e Atuação — Assis Benevenuto e Marcos Coletta. Orientação Vocal — Ana Hadad. Orientação Corporal — Rosa Antuña. Provocação Criativa — Alexandre Dal Farra. Cenografia — Ed Andrade. Iluminação– Rodrigo Marçal. Trilha Sonora Original — Barulhista. Figurino — Quatroloscinco — Teatro do Comum. Produção — Maria Mourão. Realização — Quatroloscinco — Teatro do Comum. Duração — 80 minutos.
SESC POMPEIA — Espaço Cênico — Rua Clélia, 93 — Pompeia.
Até 10 de março. Quinta-feira a sábado às 21h30 e domingo às 18h30. Ingressos — R$ 20,00 (inteira); R$ 10,00 (estudante, servidor da escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência) e R$ 6,00 (credencial plena: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes).
Recomendado para maiores de 16 anos.