Sobre “Eu Não Sou Harvey”
Dado o absurdo do argumento, eu precisei que me falassem “te juro!” umas duas vezes enquanto me contavam que os advogados do assassino de Harvey Milk usaram, de fato, seu consumo de bolinhos Twinkie como parte da narrativa de defesa do caso.
Um cara atira em e mata dois homens e seus advogados usam o consumo de comida açucarada como tentativa de atenuante.
Te juro!
Bom, pois é. Mas sabemos que tem mais do que açúcar e pólvora nessa mistura que disparou as balas contra Milk. E tem mais do que açúcar e Milk em Eu Não Sou Harvey — O Desafio das Cabeças Trocadas que segue em cartaz no Sesc Pinheiros.
A dramaturgia de Michelle Ferreira (que já tinha me dado um socão na cara com Tem Alguém Que Nos Odeia) fala do Crash de 29 , das grandes navegações, da mídia sensacionalista, do Brasil colônia, dos últimos dias de Milk, da defesa esdrúxula que dizia que o atirador não podia ser condenado porque estava com depressão (prova dela era o consumo exagerado de bolinhos em sua dieta), da cantora Anita, da outra cantora Anitta etc para ir além e refletir sobre estruturas de poder, disputa simbólica, controle de narrativas e como a homofobia se impregna na sociedade — e quem faz uso dela.
Como num exercício de teoria do caos aplicada, a dramaturgia liga pontos aparentemente desconexos e traça paralelos entre a violência estadunidense e a brasileira. Ou, ainda: fala com distanciamento sobra a violência homofóbica de lá para se aproximar da violência de cá.
O conteúdo e a agilidade do texto são, ao mesmo tempo, atrativos e fragilidades: se por um lado as ideias postas são bem apresentadas e encadeadas e com ritmo bom o suficiente para que não hajam tempos mortos, por outro lado é tanto conteúdo apresentado e em tal velocidade que é possível que o espectador se perca aqui e ali, eventualmente. E, claro, talvez seja necessário algum conhecimento prévio sobre Harvey e as pessoas que gravitaram seu redor para conectar os pontos na velocidade que a dramaturgia propõe.
Com isso, não digo que ela falha em ser didática: não, ela não falha e, honestamente, nem é essa a sua proposta. É nítido que o texto não está interessado numa cronologia precisa, documental, nem na reconstituição da vida de Milk típica de biografia convencional — o nome da peça é Eu Não Sou Harvey, afinal de contas; e, honestamente, essa abordagem não documental é uma das maiores graças da peça. O que digo é que algumas brincadeiras (a com Anita Bryant, por exemplo), paralelos e metáforas talvez funcionem melhor se você tiver algumas informações, então talvez você queira ler sobre Milk um pouco antes do espetáculo começar ou imediatamente depois dele terminar.
Pra que outras fichas caiam, é claro, você não precisa de conhecimento prévio, só do mínimo de sensibilidade: a homofobia tem sido, há séculos, um instrumento de controle e de manutenção das estruturas de poder vigentes e é necessário um esforço ativo e coletivo para que consigamos combatê-la. Nisto, Eu Não Sou Harvey usa bem de um humor sarcástico para expor o ridículo e o absurdo que é ainda precisar explicar por aí que não há nada de errado com homossexuais e com sexualidades e identidades que desviem da heteronormatividade; assim como encontra momentos de delicadeza que contrastam bem com o tom no geral sardônico e que contribuem para tornar o espetáculo ainda mais interessante.
Também gosto muito do título, Eu Não Sou Harvey , primeiro porque ele já delimita o espaço a ser ocupado (trata-se de um exercício de investigação poética, simbólica e teatral sobre homofobia, e não um exercício de reconstrução histórica, muito menos de mediunidade) e segundo porque, pelo menos pra mim, serviu como detonador de reflexão sobre como não-somos-e-somos-Harvey ou, pelo menos, como ocupo alguns dos espaços que ele ocupa: também estou inserido numa sociedade homofóbica que encontra justificativas esdrúxulas para desejar (e lucrar com) minha morte, seja a defesa da família, da moral, alguma passagem de um livro escrito há milhares de anos ou, imagina o absurdo, consumo exagerado de açúcar.
Eu não sou Harvey – O desafio das cabeças trocadas
Texto e direção: Michelle Ferreira. Idealização e atuação: Ed Moraes. Iluminação: Karine Spuri. Direção Musical: Mau Machado. Cenário: Márcio Macena. Figurino: Ed Moraes. Fotos: Caio Oviedo/Gustavo Steffen/Amanda Clemente. Videomaker: Geraldo Arcanjo. Designer gráfico: Pietro Leal. Assessoria de imprensa: Adriana Balsaneli. Gerenciamento de Mídias sociais: Beatriz Miranda. Orientação de processo: Georgette Fadel. Orientação corporal: Tainara Cerqueira. Assistente de produção: Dani D'Agostino e Micheline Lemos. Assessoria Jurídica: Alber Sena. Produção: Arrumadinho Produções Artísticas. Direção de Produção: Ed Moraes.
SERVIÇO
Eu não sou Harvey – O desafio das cabeças trocadas
Até 14 de março - Quinta a sábado, às 20h30.
12/3, sessão com tradução em libras.
Local: Auditório (3º Andar)
Duração: 60 minutos
Classificação: 14 anos
Preços: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia entrada: estudante, servidor de escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência) e R$ 9 (credencial plena do Sesc - trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes)
Vendas de ingressos:
No Portal Sesc a partir de 4 de fevereiro, terça-feira, às 12h.
Nas bilheterias das Unidades a partir no dia 5 de fevereiro, quarta-feira, às 17h30.
Sesc Pinheiros - Rua Paes Leme, 195
Bilheteria: Terça a sábado das 10h às 21h. Domingos e feriados das 10 às 18h