Sobre “Eu Não Sou Só Eu Em Mim” I Bienal Sesc de Dança

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readSep 26, 2023

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Eu Não Sou Só Eu Em Mim, do Grupo Cena 11. Foto: Karin Serafim.

Um toco de madeira gira sobre uma vitrola, e uma agulha percorre seus sulcos. Ao lado, um frasco de ácido goteja sobre uma chapa de ferro; o som da corrosão é ampliado pelo microfone, cada gota marcando o tempo, enquanto a agulha ao lado capta a música presente no toco. Câmeras captam o giro da agulha e as gotas de ácido, ampliadas na projeção ao fundo do espaço cênico. Na fronteira do palco, uma fileira de celulares, com as câmeras abertas, captam o espaço onde se dançará — ou já se dança.

Ao longo de alguns minutos, a atmosfera lentamente se estabelece, à medida em que o público entende de onde vem a música e compreende quais são os elementos postos no tabuleiro: o orgânico e o inorgânico, o mecânico e o biomecânico, parafernálias de ponta e elementos simples se organizam juntos, sem se chocar, mas construindo em parceria, investigando o argumento lentamente: tensionando os limites entre tecnologias e estados de natureza. Pela próxima hora, o grupo Cena 11 investigará a dança como tecnologia, e as tecnologias da dança.

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Eu Não Sou Só Eu Em Mim, do Grupo Cena 11. Foto: Karin Serafim.

Sendo o título de uma obra uma das suas primeiras interfaces obra-público, Eu Não Sou Só Eu Em Mim ao mesmo tempo fornece chaves de acesso e propõe novos desequilíbrios, oferece algumas respostas ao mesmo tempo que levanta novas perguntas.

“Eu não sou só eu em mim”, diz o Cena 11. Eu não sou só eu em mim, porque sou múltiplo em mim mesmo: carrego toda uma história anterior à mim, acumulada em séculos desde que começamos a chamar de Brasil o que chamamos de Brasil.

Eu não sou só eu em mim, porque também sou a tela sobre a qual o observador projeta seu olhar e suas expectativas e preciso, num país tão desigual e conflituoso quanto este, lidar com o olhar do outro — e, por vezes, preciso demolir esse olhar, reeducar esse olhar, recusar esse olhar, hackear esse olhar, confundir esse olhar.

Eu não sou só eu em mim pois existo em coletivo: num país, numa sociedade ou numa companhia de dança. Existo em coletivo, me transformando neste coletivo: absorvendo a coletividade, fagocitando-a, antropofagizando-a; o outro me transforma e eu não sou só eu em mim pois também sou o outro em mim.

O Cena 11 se pergunta sobre uma possível identidade nacional. Existe? Se existe, existe no singular? Se existe, existe a partir de quando? Se existe, existe a partir de quê? A partir — e ao redor, e através — do conceito de “povo brasileiro” de Darcy Ribeiro, a companhia dança investigando a alteridade, identidade, coletividade, para delinear uma teoria sobre (mas não só) as tecnologias comportamentais.

É possível reconhecer diversos passos, ritmos, posturas, imagens que se atravessam, somam, complementam, sobrepõem, transformam. No fluxo ininterrupto de gestos e movimentos, perguntam-nos: existe uma “dança brasileira”?

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Eu Não Sou Só Eu Em Mim, do Grupo Cena 11. Foto: Karin Serafim.

As tecnologias da dança que o Cena 11 aplica no palco não existem para responder a estas perguntas (ao menos, não num sentido racional, literal), mas para deflagrar em nós, espectadores, uma sequência de fenômenos sinestésicos; uma série de imagens abstratas, cheias de lacunas, que podem ser preenchidas pelo fruidor — ou, ainda melhor, que podem ampliar as lacunas do fruidor, aumentar as dúvidas, ampliar as confusões os desconfortos.

Saí da sessão com uma tremenda sensação de “caralho, o que eu faço com tudo isso?”. Saí mexido, incomodado, com dúvidas… racionalmente, tinha muito pouco como responder a tudo aquilo que aconteceu no palco. Sinestesicamente, por outro lado, tive uma série de respostas: meu corpo reagia, perguntava, assimilava, repudiava, inquietava-se. E segue inquieto agora, enquanto escrevo, seis dias depois da performance.

O caralho, o que eu faço com tudo isso?, naturalmente, não é um problema da obra, muito pelo contrário. É uma das suas forças, pois a compreensão lógica da obra é fugidia, indomável: o Cena 11 tanto oferece pontos de ancoragem como oferece pontos de instabilidade, nos lança perguntas, subverte lógicas, compartilha angústias. O caralho, o que eu faço com tudo isso? aumenta a vida do espetáculo: nos faz levar a obra para casa, nos faz tentar lidar com ela de outras formas, de novo e de novo, nos faz confiar em outras inteligências para fruir.

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Eu Não Sou Só Eu Em Mim, do Grupo Cena 11. Foto: Karin Serafim.

Uma batida toma o espaço cênico. Algo entre um metrônomo, um batimento cardíaco ou uma britadeira marca o tempo , determina o ritmo no qual os corpos em cena dançarão. No futuro, flashes iluminarão o palco, rebatidos pelo piso branco e ecoados pelas telas.

Nossas pupilas reagem à luz, nosso próprio pulso responde ao pulso mecânico das caixas de som. Os corpos no espaço cênico dançam a partir, através, ao redor e apesar destes dois elementos: ora cedem ao ritmo, dançam estimulados por ele; ora o desafiam, dançam ainda mais rápido, ainda mais intensos, ainda mais vorazes; ora o desafiam e dançam mais lento, propondo pausas e paradas onde o ritmo não as determinam.

Os elementos mecânicos e bio mecânicos compõem juntos a fenomenologia. As tecnologias de ponta — a habilidade técnica dos dançarinos e as estruturas técnicas da encenação — somam-se e explodem em nós. O estado dos corpos dos dançarinos se altera, mas o da plateia também. O pulso mecânico interfere no nosso pulso, a luz e as projeções desafiam nosso olhar, da mesma forma que a coreografia também o faz: nossos corpos reagem aos corpos dos dançarinos, ao seu cansaço, à sua vitalidade, aos seus saltos, à suas quedas, às suas relações com o chão e com os outros.

Eu não sou só eu em mim também significa que há espaços, nos bailarinos, para a tecnologia da encenação. Eu não sou só eu em mim pois também me transformo pela música, pela luz, pela projeção, me torno outra coisa ao me conectar com isso.

E também eu não sou só eu em mim porque, em certos momentos, os performers acolhem uns aos outros: oferecem colo, oferecem amparo, oferecem pouso em contraponto à velocidade vertiginosa do entorno. Eu não sou só eu em mim porque preciso do outro, do afeto, do calor, do respiro, do apoio, do contraponto.

Da mesma forma, nosso corpo frui a obra, lida com ela, cria conexões com ela da ordem da sensação. O corpo deles dialoga com o nosso corpo. De alguma maneira, eu saí cansado da apresentação, querendo silêncio, querendo calma, meu corpo precisando assentar tudo. Eu, de alguma maneira, dancei com eles. Ou fui dançado por eles. Ou fui dançado neles. Ou eles dançaram sobre mim.

Ainda não sei o que fazer com tudo isso.

E isso é foda.

O Tudo, Menos Uma Crítica viajou a Campinas a convite do Sesc São Paulo para acompanhar a Bienal Sesc de Dança de 2023.

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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