Sobre “Epidemia Prata”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readMay 29, 2018
Epidemia Prata. Foto: Mariana Beda

Quando eu comecei no meu novo emprego, minha família ficou preocupada por ele ser ao lado da região conhecida como Cracolândia. “Não é muito perigoso?”, “toma cuidado, viu?” e “não anda por lá sozinho” foram coisas que eu ouvi e ouço recorrentemente, como se essa região fosse muito mais violenta e perigosa do que as outras onde eu trabalhei e morei — afinal, eu sou de uma região de Guarulhos que não é necessariamente a mais pacífica do mundo.

Tenho percebido, à medida que trabalho por aqui, que a percepção das pessoas sobre a região não condiz com a realidade. É óbvio que é uma zona precarizada, que demanda atenção e políticas públicas eficazes, é óbvio que há uma violência latente decorrente da miséria, é claro que é uma região que depende da ação e da sensibilidade de pessoas muito mais inteligentes e capazes do que eu, mas ao mesmo tempo ela não é só isso. E reduzir uma região e, consequentemente, seus moradores, a só isso — a começar pelo nome Cracolândiae pelas comparações dos habitantes da região a zumbis — é mais uma violência nesse ciclo de desencontros, desentendimentos e desinteresse que serve de manutenção para o estado do lugar.

Trabalhar na região, especialmente com cultura, me fez repensar nas estratégias de diálogo — como pensar na formação de público? Como trabalhar para que arte e cultura representem algo para as pessoas do entorno? Como pensar em ações extracampo? — e na falência das ações convencionais.

Foi com esse pensamento recorrente que assisti a Epidemia Prata, novo projeto da Cia Mungunzá, que versa um pouco sobre sua ocupação desde 2016 de um espaço da Cracolândia e da relação dos moradores da região com o Teatro de Contêiner e vice-versa. Se eu percebia um tom otimista no trabalho anterior da companhia, Poema Suspenso Para Uma Cidade Em Queda, no atual ele não é substituído por pessimismo, mas claramente não está mais lá. Talvez ele tenha sido trocado por realismo, por objetividade, por calos, ou talvez ele permaneça, mas junto com outras coisas.

De todo modo, percebo essa montagem menos lúdica do que a anterior, sem o tom de fábula e sem a singeleza que permeavam Poema e com uma crueza, uma secura notáveis. Isso não é nem bom nem ruim, nem melhor nem pior, mas está presente. E também faz sentido: ao falar de tantos moradores da região que inspiraram histórias e cenas e que morreram antes de o espetáculo estrear, a companhia expõe os problemas do fluxo, a brevidade da vida, o estado das coisas, o desgaste que é fazer um projeto e ele impactar aos poucos, no mínimo, sem tempo de salvar (na falta de uma palavra melhor) a todos.

Ainda assim, resta o teatro. Ao transportar para o palco esses quase dois anos de vivência de Contêiner e Craco, a companhia aposta numa narrativa coral, apoiada em episódios específicos, em pessoas reais e em imagens que dêem conta de apresentar a atmosfera, servir como elipse ou para deslocar/ampliar sentidos. Vale citar o uso de instrumentos musicais de sopro (trombone, trompete, flauta) como cachimbos de crack ou uma cena onde todo o elenco se empilha sobre um monte de moedas, meio como uma orgia, meio como um desmoronamento, meio como uma disputa por território.

Servindo de contraste para procedimentos objetivos, como relatos da companhia e mimese dos moradores da região, essas imagens subjetivas cobram outra qualidade de atenção e compreensão da plateia e adicionam outras camadas ao espetáculo. Também servem para emancipar a montagem da palavra, evitando uma verborragia que poderia ser cansativa ou anestesiante — ouvir a companhia falar sobre as coisas é importante, óbvio, mas vê-los transformar esses anos de ocupação e de pensamento sobre o espaço público e a relação entre os habitantes em imagens, é desafiador e muito prazeroso.

Me pergunto o quanto o espetáculo crescerá no futuro, quando for apresentado no Contêiner, para os moradores da região. Onde ele reverberará, o que será acrescentado, o que será refeito, quando os outros donos da história assistirem à peça. Que tipo de reflexões ela suscitará, que diálogos surgirão dela, o que será construído a partir daí?

Vez ou outra me pego pensando no porque de fazer teatro, no porque de trabalhar como educador em espaços culturais, no porque de escrever textos sobre espetáculos que assisti. Como isso auxilia? O que de bom as pessoas tiram de uma peça que eu dirigi ou da minha explicação sobre um quadro modernista do acervo de uma instituição privilegiada que é frequentada pela nata dos moradores de Higienópolis que mais vão ao museu pra falar que também têm um Brecheret ou um Cícero Dias em casa do que pra qualquer outra coisa?

Saí numa crise forte da estréia de Epidemia, pensando no porque do teatro, no porque dos museus, de que modo a gente ultrapassa nossas bolhas e resolve o mundo — e se o teatro e o museu têm a obrigação de resolver alguma coisa. Honestamente, não faço ideia. Mas fico feliz que a Mungunzá esteja fazendo algo, botando as crises no palco, transformando uns sufocos em cena. Talvez — provavelmente — o pessimismo e o desencanto que eu cito no começo do texto não seja deles, mas meu, porque de todo modo lá estão eles fazendo teatro, propondo espaços de encontro, fazendo o que dá.

Talvez seja assim que a gente, se não resolve o mundo, pelo menos ajuda a desafogar.

Sei lá.

Epidemia Prata
23 de maio a 15 de junho, de quarta a sexta-feira, às 21 horas (sessões extras nos dias 16 de junho, sábado, às 21 horas e 17 de junho, domingo, às 18 horas). Ingressos R$ 40,00 (inteira); R$ 20,00(estudante com carteirinha e aposentado) e R$ 12,00 (credencial plena).
Sesc 24 de Maio. Rua 24 de Maio, 109 — República. Telefone: (11) 3350–6300.

Ficha Técnica
Argumento e Texto — Cia. Mungunzá de Teatro.
Supervisão Dramatúrgica — Verônica Gentilin.
Direção — Georgette Fadel.
Codireção — Cris Rocha.
Assistente de Direção — Victor Djalma Amaral.
Preparação Corporal — Juliana Moraes.
Direção Musical — Bruno Menegatti.
Elenco — Gustavo Sarzi, Leonardo Akio, Lucas Beda, Marcos Felipe, Pedro Augusto, Verônica Gentilin e Virginia Iglesias.
Vídeos — Flavio Barollo.
Arquitetura Cênica — Leonardo Akio e Lucas Beda.
Figurino — Sandra Modesto.
Desenho de Luz — Pedro Augusto.
Materiais Gráficos — Leonardo Akio.
Fotos de Divulgação — Letícia Godoy e Mariana Beda.
Produção Executiva — Lucas Beda, Marcos Felipe, Sandra Modesto e Virginia Iglesias.
Produção Geral — Cia Mungunzá de Teatro.
Coprodução — Cooperativa Paulista de Teatro.
Duração — 80 minutos.
Espetáculo recomendável para maiores de 14 anos.

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica