Sobre “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes”
Dia desses estava conversando com uma amiga sobre como tem espetáculos cuja força está em demolir a quarta parede, te puxar pra dentro do seu universo poético, te implicar nos problemas que ela aponta, sem blackout para te proteger.
Um exemplo desse tipo de espetáculo seria Cabaré Coragem, onde o Grupo Galpão te traga gentilmente para dentro da cena, como o mar que te puxa suave mas inexoravelmente para si.
E também existem espetáculos que atingem sua potência máxima justamente ao te deixar à deriva na sala escura, observando o que se desenrola no palco. A posição privilegiada de espectador imerso na sala escura lhe permite ver o universo poético efervescendo no tablado, à medida em que o escuro borra as fronteiras entre o palco e a plateia, entre você e a cena, e tudo acontece na interseção entre os dois.
É o caso de Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, da franco-brasileira Cia. Dos à Deux.
Estamos lá, mergulhados no escuro, e vemos o universo criado por André Curti e Artur Luanda Ribeiro (responsáveis pela dramaturgia, encenação, coreografia e performance) trovejar diante de nós. Uma imagem sucede a anterior e será sucedida pela próxima sem fio condutor claro, sem conexão lógica e racional entre elas, sem palavras que lhes deem contorno ou compreensão imediata.
As coisas que sucedem no palco são da ordem do sonho, do surreal, do difuso quase abstrato. As imagens e atmosferas que surgem no palco vem cheias de possibilidades de significado, cheias de possibilidades de serem sentidas, de serem decupadas emocionalmente. Cabe ao espectador observar o abismo profundo que se abre diante de si ao mesmo tempo em que observa o abismo profundo que carrega em si mesmo: será sua bagagem pessoal que o auxiliará a encontrar sentido e contorno em Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes.
É verdade a máxima que diz que quando falamos de uma obra de arte, falamos mais de nós mesmos do que da obra — falamos dos nossos repertórios, das nossas leituras, das nossas capacidades de nos aproximar dela, e das coisas dela que nos escapam. Da mesma forma, quando assistimos a uma peça, também assistimos a nós mesmos.
Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, tem suas imagens tão cheias de convites às múltiplas compreensões quanto cheias de lacunas a serem preenchidas pelo observador, e joga muito bem com isso. Organiza e desorganiza uma série de tempestades no palco, que ribombam no espectador, como um relâmpago que cai lá mas cujo trovão ruge aqui.
Não falo aqui de um espetáculo laissez-faire, como se essa multiplicidade de sentidos surgisse de uma frouxidão ou da incapacidade da companhia de conferir os contornos que desejasse. É o oposto: seu domínio técnico, físico e imagético é justamente o que possibilita um terreno firme por onde o público pode projetar seus sentidos, sem o risco de que o solo ceda.
Neste terreno firme criado por Curti e Luanda Ribeiro, discorre-se (talvez) sobre a passagem do tempo, sobre a dualidade entre o mundano e o sublime, sobre a queda e o voo, sobre o caminhar e o ancorar, sobre estranhamento e reconhecimento, sobre feridas e o processo de cura. Duas figuras em cena às vezes se contrapõem, às vezes se complementam, são duplos e negativos, às vezes o mesmo e às vezes nenhum. Talvez ela verse sobre o outro, assim como pode falar do encontro consigo mesmo, com o encontro com o outro “eu” que descobrimos em nós, estrangeiro de nós mesmos.
Imagens, sentidos e possibilidades passam pelo palco, como nuvens pelo céu — sempre em movimento, sempre em mudança, sempre em relação.
Criado no contexto pandêmico, não é de se espantar que Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes fale tanto sobre relação com o outro: sua presença, seu choque, sua falta, a força que temos com ele ou a que temos apesar dele.
Da mesma forma, o medo (e sua superação) e a melancolia (e a experiência de mundo única que ela nos proporciona) são forças motrizes da criação. Medo, melancolia e a necessidade (da distância) do outro foram as tônicas de um evento mundial traumático sem precedentes na nossa vida.
Há no horizonte do espetáculo uma noção de mundo triste, arriscado, solitário, talvez em ruínas… mas ultrapassando esse horizonte, há um seguinte, de uma pulsão de vida e de um deslumbramento na experiência de se estar vivo (mesmo em meio ao horror)
As imagens criadas pela Cia. Dos à Deux são da ordem do deslumbre, do encantador — a cena da chuva, por exemplo, parece mágica. Me parece lógico: não há outro meio de habitar este mundo, habitar a si mesmo, ou habitar em relação ao outro, sem se deslumbrar, continuamente, por isso.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes
Ficou em cartaz no Teatro Vivo até 28 de julho de 2024
Direção, dramaturgia, cenografia e performance: André Curti e Artur Luanda Ribeiro
Trilha Sonora original: Federico Puppi
Iluminação: Artur Luanda Ribeiro
Cenotécnica: Jessé Natan e VRS
Assistentes de cenotécnica: Iuri Wander, Bruno Oliveira, Eduardo Martins e Rafael do Nascimento
Criação de objetos: Diirr
Criação videográfica e Mapping: Laura Fragoso
Imagens: Miguel Vassy e Laura Fragoso
Figurino: Ticiana Passos
Operação de som e vídeo: Gabriel Reis
Técnico e operação de luz: Tiago D’Avila
Coordenação de montagem Cenotécnica e Contraregragem: Iuri Wander
Preparação/criação percussiva: Chico Santana
Costura da caixa preta: Cris Benigni e Riso
Costura dos figurinos: Atelier das Meninas
Assessoria de imprensa: Canal Aberto — Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes
Designer gráfico: Dante
Adaptação das artes: Thiago Ristow
Fotos: Nana Moraes e Renato Mangolin
Coordenação administrativo-financeira: Alex Nunes
Produção executiva: Silvio Batistela
Produção São Paulo: Pedro de freitas e Adolfo Barreto
Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela — Galharufa Produções
Realização: Cia Dos à Deux