Sobre Encantado I Bienal Sesc de Dança

Tudo, Menos Uma Crítica
3 min readSep 18, 2023

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Cena de Encantado, da Lia Rodrigues Companhia de Danças . Foto: Sammi Landweer

A primeira cena de Encantado é também uma das encantadoras do espetáculo. Isto não é um trocadilho com o seu grande poder imagético, mas o reconhecimento de seu poder encantarório: é ela que abre o ritual e começa o encantamento proposto por Lia Rodrigues e sua companhia.

Ao longo de alguns minutos, os dançarinos e dançarinas da companhia desenrolam cobertores coloridos sobre o palco então nu. Estabelecem, assim, os três principais vetores do fenômeno que acontecerá: os corpos, os cobertores e o espaço. Tudo que surgirá ao longo do espetáculo surgirá a partir do encontro/da tensão/da soma/do atrito/da transmutação destes três elementos.

Os cobertores, somados aos corpos, criarão figuras fantásticas: as proporções dos corpos serão modificadas, alongando membros, criando volumes, extrapolando as silhuetas tradicionais. As estampas proporão leituras distintas: flores que brotam, selvas que dançam, animais que espreitam, plantas-animais que espreitam, animais-selvas que dançam.

Os corpos navegam pelo espaço, sozinhos, em grupos, em trios ou duplas, estabelecendo relações de poder e afeto históricas e fabulares.

Espalhados pelo chão, os cobertores definem o espaço fantástico de onde tudo surgirá, e de onde eventualmente os corpos se emanciparão — a área de encantamento invadirá o mundo.

A palavra encantado se refere às entidades que pertencem a cosmogonias afro-ameríndias. Habitam os espaços entre céu/terra, povoando selvas, pedras, dunas, rios, lagos, mares, sendo indissociáveis da natureza: existem nela e por causa dela, e tornam sagrados os espaços em que habitam.

Ocorre o mesmo com os dançarinos: tornam o palco do galpão do Sesc Campinas sagrado e mágico, e tornam-se sagrados e mágicos por ele. Do encontro palco/dançarinos surgirão figuras que poderão ser identificadas como humanas, como animais e como fantásticas, numa conjuração de uma realidade nova — ao mesmo tempo revisando histórias e ancestralidades, e invocando uma nova possibilidade de futuro.

Estreado em 2021, o trabalho é uma elaboração sobre a coletividade e a transmutação antropofágica: sobre se integrar com o outro, com o meio e, deste encontro sacralizado, criar uma nova forma de viver.

No encontro dos corpos, as figuras atingem dois metros de altura, ecoam os gestos dos outros, complementam os movimentos e, sobretudo, festejam.

Claro, festa não deve ser entendida aqui como improviso nem como laissez faire. É nítido o rigor coreográfico de Rodrigues e de sua companhia: tudo é coreografado, ensaiado, previsto e intencional.

Daí também que surge outro aspecto da beleza de Encantado: tudo é rigoroso, de um alto nível técnico e ainda assim (e justamente por isso), parece fácil. Tudo parece surgir espontaneamente, sem esforço — e isso é de uma sofisticação técnica impressionante.

É bonito ver como, na cosmogonia da Lia Rodrigues Companhia de Danças, o corpo (e o encontro dos corpos) é uma alegria, uma celebração, uma festa — como na frase de Galeano. Na coreografia, encontrar-se com o outro (e construir com o outro, habitar com o outro, transformar com o outro, encantar-se pelo outro) é uma fabulação do presente e do futuro; a dança é uma invocação desta utopia.

O Tudo, Menos Uma Crítica viajou a Campinas a convite do Sesc São Paulo para acompanhar a Bienal Sesc de Dança de 2023.

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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