Sobre “Elza”

Tudo, Menos Uma Crítica
6 min readJun 21, 2019

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Aconteceu um momento tão interessante ontem, na reestreia do musical Elza, que acho que sintetiza bem a potência desse espetáculo.

Em certo momento, depois de uma puta cena sobre feminicídio (isso já dentro de um espetáculo que metralha o machismo e o racismo a todo momento), as atrizes finalizam a ação em fila, de peito aberto, encarando a platéia. Uma força imensa: elas numa postura combativa, senhoras de si e senhoras da cena, o nome de mulheres incríveis como Dandara e Marielle ecoando no silêncio do teatro. Um dos pontos altos da encenação. A plateia explode em aplausos, um pouco porque é teatro musical e a gente conhece o código: temos que aplaudir nas deixas; outro tanto porque a cena é realmente foda.

Os aplausos duram um tempo. As atrizes não se mexem. A luz não muda. A banda não toca. Ninguém dá a deixa de que podemos parar de aplaudir. Os aplausos lentamente vão morrendo, a euforia vai passando, o silêncio vai crescendo, as atrizes não se mexem, continuam impassíveis, o desconforto vai se instalando, as atrizes não se mexem, a cena se dilata para além do espetacular do teatro musical, para além do aplauso do virtuosismo, para além do “isso é só uma peça”. O silêncio permanece. A postura hierática das atrizes permanece. A plateia parece meio acuada. Eu já aplaudi a cena, o que mais é pra eu fazer?

Aí que tá o brilhantismo desse momento. Não é só uma cena: é um minuto de silêncio pelas vítimas do feminicídio. Não é só uma cena, é uma chamada na chincha: o que você tem feito para desarmar o machismo e o racismo? O silêncio não é a deixa para a plateia aplaudir: é o momento em que a plateia deve honrar aquelas que caíram, honrar aquelas que estão de pé, refletir sobre que papel ela desempenha na sociedade atual e na manutenção das suas desigualdades.

Não é aplaudir, consumir o produto cultural, elogiar que alguém atingiu uma nota absurda, ficar confortável atrás da quarta parede: é perceber de qual lado você está. É foda.

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Já faz alguns anos, você sabe, a cena musical anda muito aquecida aqui no teatro brasileiro. Um monte de enlatados norte-americanos ou europeus apaziguadores, formatados para a plateia (que pagou um dinheirão pelo ingresso) curtir o momento, esquecer da vida, ficar nesse estado onírico quase transcendental e depois comer uma pizza descompromissadamente. Nada contra, aliás: adoro esse tipo de rolê, choro em quase todo musical, a armadilha me pega sempre.

Aqui no BR a gente encontrou um nicho que é o de Grande Cantor(a) — O Musical, estruturado de modo muito didático a fim de contar a vida de determinado artista, celebrando sua história e sua obra. Nada contra também, me divirto super.

Elza inclusa nesse eixo: é a celebração espetacular da vida espetacular de uma mulher inspiradora. Mas é também um espetáculo anti-espetacular, no sentido de que não quer só seduzir pelos efeitos e criar uma bolha espaço-temporal onde você pode sentar, relaxar, esquecer das mazelas da vida.

Pelo contrário, Elza bebe da vida real e parece desejar afetar a vida real: quando canta Maria da Vila Matilde ou A Carne é quase um grito de guerra, uma chamada pra luta. Quando as atrizes dizem que querem ressignificar, que a carne mais barata do mercado foi a carne negra, é um basta, é um boa sorte se você quiser ir comer uma pizza descompromissadamente no final da sessão agora que nós te apresentamos essas questões e também é tua função social refletir sobre elas, lidar com elas, elas também são problema seu.

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Recém-premiada pela APCA (na real,todo o musical tá premiadíssimo, tendo rapelado o Shell, o Reverência, o Cesgranrio, o APTR em diversas categorias), a dramaturgia de Vinícius Calderoni é muito inventiva justamente por não ser didática ou linear: sete intérpretes dão corpo e voz a Elza em diversos momentos de sua vida costurados habilmente pelo texto. As rimas entre passado e presente (a queda da morte de um filho/a queda de um palco), as variações de estilo (os momentos mais convencionais misturados com momentos mais experimentais, como a construção da fala das sete atrizes na cena da morte da mãe de Elza, que me fez pensar nos poemas dos Irmãos Campos, por exemplo)… um trabalho muito sofisticado. A direção de Duda Maia encontra soluções bem elegantes (o uso de baldes e latas pra construir personagens é de uma teatralidade básica, primal, muito interessante; a sensibilidade pra dosar momentos que são grandiloquentes e show com momentos que são menores e mais intimistas é bem bacana) e potencializa o trabalho de Calderoni, das sete intérpretes ( Janamô, Júlia Tizumba, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Larissa Luz, Verônica Bonfim) e da banda (perdão, eu não encontrei o nome das gurias em nenhum lugar, assim que encontrar atualizo aqui), que é tratada como parte da cena e não só um apêndice escondido atrás do cenário ou debaixo do fosso.

É bonito isso, todo mundo às vistas do público, a banda tendo momentos de protagonismo. Também é bonito todo mundo vindo receber aplauso junto, e não aquilo de primeiro os coadjuvantes, depois os atores menos famosos, e por fim os grandes nomes do elenco… cria uma unidade, mostra que todo mundo tá ali junto, que não tem hierarquia. É bem coerente o posicionamento do espetáculo.

Também é foda só ter mulher em cena, foda serem mulheres bastante distintas entre si, todas tão poderosas. Foda, foda mesmo.

Se todas essas escolhas são, em boa medida, políticas, os momentos em que o musical assume declaradamente uma posição, fala abertamente de determinados assuntos… putz. Os momentos em que se aponta a violência sofrida pelas mulheres, pelas pessoas negras, pelas pessoas periféricas, quando se fala do (falso) moralismo, da desigualdade social…e aquela puta cena em que se fala sobre portar voz (mais um momento em que a plateia aplaudiu pra cacete, de pé, dá até um otimismo, parece até que a gente vai conseguir fazer do mundo um lugar melhor)!!!! Fora as outras coisas que eu, que sou branco, homem, morador do centro não tive sensibilidade pra pegar, mas que obviamente estão ali, sobretudo na direção e nos corpos e vozes das minas em cena.

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Fiquei pensando no conceito das perguntas e de seu poder de impulsionar, de botar as coisas em movimento apresentado no espetáculo.

Fiquei com a impressão de que o musical afirma uma série de coisas (e acho isso foda, acho que nos dias de hoje a gente tem mesmo que assumir uma postura, comprar a briga, definir os limites) ao mesmo tempo em que pergunta outra série de coisas e dá espaço para que o espectador pergunte-se.

O silêncio da cena do feminicídio era tão forte porque era o momento em que uma pergunta era feita, preenchia o espaço, penetrava na gente, botava algo pra mexer.

Voltei pra casa com algumas perguntas na cabeça, umas que eu já sei, outras que eu já me fazia e ainda não sei como responder, outras novas, algumas inclusive surgiram enquanto eu revisitava a sessão de ontem pra escrever esse texto e as quais ainda nem faço ideia de por onde começar a refletir. Mas também fiquei com curiosidade sobre as perguntas que brotaram na cabeça das outras pessoas, e por quais caminhos essas perguntas as levaram.

Então, se tu já viu Elza,me chama pra trocar uma ideia e me conta quais foram as suas? Quero saber por onde elas podem me levar.

Elza. Foto de Karen Eppinghaus

FICHA TÉCNICA

Elenco: Janamô, Júlia Tizumba, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte, Verônica Bonfim e a atriz convidada Larissa Luz.

Direção: Duda Maia

Texto: Vinícius Calderoni

Direção Musical: Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet

Arranjos: Letieres Leite

Idealização e Direção de Produção: Andréa Alves

SERVIÇO

Elza, de Vinícius Calderoni, com direção e Duda Maia

Teatro Sergio Cardoso — Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista
Temporada: 20 de junho a 14 de julho 2019 (exceto nos dias 04 e 05 de julho)
Quinta a sábado, às 20h; e domingos, às 17h

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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