Sobre “E Se Fôssemos Baleias?”
Não sei se você sabe, mas o pôr-do sol de Marte é azul. Devido à sua atmosfera particular, pouco densa e rica em dióxido de carbono, e à quantidade de poeira flutuando no ar, o pôr-do-sol no planeta vermelho é azul.
Em 19 de maio de 2005, o ranger Spirit, da Nasa, fotografou o Sol se pondo na cratera de Gusev, garantindo que nós fôssemos os primeiros seres humanos na a ver imagens do pôr-do-sol marciano. Como a humanidade é incrível, né?
Ainda falando sobre a humanidade: o mundo está acabando, você deve ter ouvido falar. Deve ter ouvido falar algumas vezes. Ao longo dos últimos anos. Em tons cada vez mais fatalistas, indo de “se não fizermos nada, ultrapassaremos o ponto de não-retorno de abuso dos recursos da Terra” até “bom, camaradas, ultrapassamos, é isso aí, quem sair por último apague a luz”.
E a minha anedota predileta no meio disso tudo é que é mais fácil vislumbrar o fim do mundo do que vislumbrar o fim do capitalismo. O mundo tá capenga, xoxo, anêmico, mas a lista dos 10 maiores bilionários de 2024 da Forbes acusa que vários conglomerados (principalmente os de varejo e tecnologia) apresentaram lucros na casa das dezenas de bilhões de dólares nos últimos doze meses.
Seguimos produzindo, transportando e consumindo em tal intensidade e em tal volume, que um dos temas do momento são os microplásticos — subproduto do excesso do uso dos polímeros na fabricação ou na embalagem de produtos do nosso dia-a-dia.
Nos últimos anos foram encontrados microplásticos na água de alguns reservatórios, em salmões, no leite materno, em frutas, em verduras, no sal, no sêmen, e em baleias.
Às vésperas desse colapso, A Digna sonha com as possibilidades de fugir da máquina, ainda que por um momento.
Em E Se Fôssemos Baleias? , terceira parte da Trilogia do Acúmulo, uma funcionária de um grande centro de distribuição passa seus dias embalando e despachando produtos, escaneando códigos de barras e inserindo dados no sistema, num mundo onde nada tem nome, apenas número de série e prazo de frete. Dessensibilizada pela carga horária excessiva e pela pressão da altíssima performance, ela mergulha num paradoxo comum a todos nós: está ao mesmo tempo exausta e incapaz de descansar.
Esgotada e insone, vive num estado que talvez seja familiar a você que lê: está com suas forças tão drenadas que é incapaz de fazer qualquer coisa que não seja tentar descansar para trabalhar no dia seguinte, vivendo no loop de recuperar suas energias apenas para exauri-las em algumas horas.
E, exausta, não consegue descansar, nem acessar uma vida que vá além do imediatismo do empacotamento, tornando-se uma mulher-máquina prestes ser descartada por dar defeito ou porque surgiu um novo modelo, mais eficiente — o que vier primeiro.
Para A Digna (e, coincidentemente, para as 28 Patas, que estão em cartaz com Um Jaguar Por Noite), uma possibilidade de liberdade pode vir do sonho. A protagonista sonha que é uma baleia, magnânima e, sobretudo, livre, e logo o mundo da hiper-performatividade mal-remunerada passa a fazer ainda menos sentido do que antes. Quem quer ser uma colaboradora, se pode ser uma baleia? Quem quer despachar 1 pedido a cada 3 segundos, quando se pode nadar a 27km/h?
Se a possibilidade surge do sonho, se é a partir da fabulação onírica de uma vida mais livre que a alternativa começa a se rascunhar, a inteligência d’A Digna é não subestimar as estruturas sofisticadas do seu algoz: a maior habilidade do capitalismo é cooptar tudo, tornar tudo produto e monetização — inclusive a rebeldia contra ele.
Na jornada de sua protagonista, a fuga de uma armadilha só leva à armadilha seguinte, mais sutil e sofisticada. A insurreição vira apoio nas redes sociais, que vira obrigação de produzir conteúdo. Do trabalho remunerado numa grande varejista para o trabalho não remunerado para uma plataforma digital. Da supervisão de uma pessoa de carne e osso, (ainda que boçal), para a obediência às métricas e algoritmos. De criticar o antigo trabalho a fazer uma collab com ele, a fim de uns trocos — afinal, que gestão de crise melhor do que contratar o detrator para uma campanha de marketing?
Como num jogo, passar de uma fase só leva à fase seguinte e ao chefão seguinte, pior que o anterior. E digo “jogo” justamente pensando em gameficação , outra palavra disruptiva do momento, que desloca o brincar, o jogar e o divertir para a ordem do produtivimo, do treinamento, da instrumentalização, da otimização de recursos e maximização de resultados.
Em determinada cena, enquanto Ana Vitória Bella dá seu texto, Helena Cardoso monta uma Máquina de Goldberg. Máquinas de Goldberg são estruturas propositalmente complexas que realizam ações objetivamente simples, geralmente por base de efeitos em cadeia. No caso da peça, um percurso de blocos de madeira por onde uma bolinha de metal rola, até chocar-se com outro bloco e, preferencialmente, derrubá-lo.
De algum modo, me parece que essa cena encapsula bem o argumento da peça: estamos lá, inseridos num mecanismo complexo, composto de tantas partes que nem conseguimos perceber todas, num percurso pré-programado, organizado por forças anteriores a nós, do qual não há muito como fugir.
Perdão. Tentei ser otimista, mas não é o caso. Não há como fugir, ponto.
Ou, pelo menos, não imediatamente.
O que podemos fazer enquanto rolamos Máquina de Goldberg abaixo?
Talvez consigamos sonhar com outras estruturas, enquanto pegamos velocidade máquina abaixo, rumo ao choque com o bloco final. Talvez consigamos sonhar com estruturas que não sejam maquinais. Talvez consigamos sonhar com estruturas que não sejam úteis — digo, que não tenham a função utilitária comum ao capitalismo, onde tudo deve servir para algo: o controle remoto, o interruptor, o ansiolítico, a escada, você que está lendo.
Talvez, da mesma forma que, um dia, alguém sonhou que o sentido da vida envolvia acumular mais dinheiro do que jamais será possível gastar sozinho, às custas de todos os recursos naturais, possamos sonhar um outro sentido para as vidas que virão (porque a gente, mesmo, não tem pra onde correr). Sonhar dormindo ou sonhar acordado, fazendo teatro, mas investir na força catalizadora do sonho como evocador de futuros.
Somos capazes de feitos incríveis, e de conquistas monumentais. Por exemplo, ver o pôr-do-sol de Marte. Por exemplo, exaurir o planeta em que vivemos ao ponto da quase destruição, ao ponto do absurdo dos microplásticos nas cenouras e do deserto de roupas de grife no Atacama — como a humanidade é incrível, né?
Talvez possamos sonhar com outros modos de viver e, sonhando com eles possibilitar que as baleias que estão vindo, os vivam.
E Se Fôssemos Baleias? cumpriu temporada entre 09 de maio e 15 de junho no Sesc Pinheiros.
Idealização e realização: A Digna. Dramaturgia: Victor Nóvoa. Direção: Fernanda Raquel Elenco: Ana Vitória Bella e Helena Cardoso. Produção: Carol Vidotti. Trilha sonora original: João Nascimento. Direção de arte: Renan Marcondes. Iluminação: Matheus Brant. Figurinos: Joana Porto. Trilha sonora original: João Nascimento. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli. Assistência de produção: Marô Zamaro. Assistência de figurino: Rogério Romualdo. Operação de som: Thiago Shin. Operação de luz: Matheus Brant. Colaboração poética: Maria Thaís.
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