Sobre Dolores — Minha Composição
Você já deve ter ouvido algumas (centenas de) vezes que o teatro é a arte do encontro. Sim, é meio clichê e sim, é meio gasto falar isso, mas, ainda assim, vale a pena começar desse lugar-comum: o teatro carrega em si — e é carregado pela — potência do encontro.
Não falo aqui só do encontro entre público-elenco, ou do encontro entre a equipe criativa essencial para a construção do espetáculo; falo, principalmente nesse caso, do espaço de encontro que o teatro instaura: o momento em que nos reunimos ao redor de uma ideia, um conceito ou uma pessoa. Por exemplo, a possibilidade de conhecer Dolores Duran.
Assim como o encontro entre intérprete e personagem na superfície do espelho que dispara a dramaturgia, Dolores — Minha Composição é uma proposta de encontros: um espaço para que o público se encontre com Dolores Duran — claro, uma Dolores dramaturgizada, uma Dolores sob um ponto de vista, uma Dolores imaginada, pesquisada, inventada mas, ainda assim, algo de essencial dela se apresenta e se encontra.
Seja pela construção factual — os nomes, os eventos, as fotos dos jornais e dos álbuns — seja pela apresentação das suas composições, contextualizadas na dramaturgia, seja pela subjetividade que surge nas brechas da objetividade documental, a proposta de Dolores — Minha Composição é que o público (re)conheça Dolores Duran. Conheça-a, re-conheça-a e, quando possível, reconheça algo seu nela e dela em si.
A luz que Rosana Maris, protagonista e idealizadora do projeto, lança sobre Dolores tenta iluminar mais do que aquilo que já é bastante sabido , realçando pontos importantes para se entender a complexidade da artista: sendo uma mulher negra inserida num contexto machista, conservador e racista, os desafios superados por Dolores foram triplamente maiores e, por isso, seu sucesso é ainda mais inspirador. Sua presença e suas vitórias são significativas porque abrem espaços e precedentes num contexto onde antes não existiam — ou ,se existiam, ainda não eram (ou são) na quantidade suficiente.
Rosana e Dolores se encontram no palco, os desafios de ser artista num país machista, conservador e racista naquela época ou nesta ficam sobrepostos, intersecionados, numa fricção que discute o quanto se avançou de lá pra cá, ou o quanto de Dolores ainda ecoa na indústria atualmente.
A piada sobre como Dolores se daria bem com o pessoal da sofrência é pertinente por comentar sobre a soberania das mulheres num gênero que, até poucos anos atrás, era dominado por cantores, compositores e produtores homens — o que relegava a mulher, em suas músicas, à figura de coadjuvante, vilã sem coração, donzela passiva ou sedutora perigosa. O impacto causado pelas músicas feitas por mulheres, sobre mulheres e para mulheres é um fenômeno que não escapa à Rosana, e à sua habilidade de olhar para trás olhando para o presente.
É bonito ver como Dolores se aproxima de Dolores Duran, com um respeito e uma simpatia (presentes na atuação, na encenação e na dramaturgia) tão calorosos que é quase como quando um amigo quer nos apresentar a uma pessoa que nós não ainda conhecemos, ou ainda não conhecemos tão bem quanto ela merece.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena e @cena.aberta.teatro , junto à produtora @corporastreado
Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.
Dolores — Minha Composição
Esteve em cartaz de 23 de março a 16 de abril no Itaú Cultural — Av. Paulista, 149 — Bela Vista, São Paulo
Concepção e Dramaturgia — Rosana Maris
Direção e Cenografia: Luiz Fernando Marques (Lubi)
Direção Musical — Fernanda Maia
Atriz — Rosana Maris
Preparação da Atriz — Denise Weinberg
Figurinos — Yakini Rodrigues
Preparação Vocal — Gilberto Chaves
Orientação Corporal — Janette Santiago
Músicos — Marcelo Farias, Pedro Macedo, Rodrigo Sanches
Lighting Design — Wagner Pinto
Assistência de Direção — Gabi Costa
Design de Som — João Baracho
Voz em off — Rodrigo Mercadante
Visagismo (Cabelo e Maquiagem) — Dicko Lorenzo
Design Gráfico — Fabio Viana
Direção de Produção — Daniel Palmeira
Produção/Idealização — Bem Te Vi Produções Artísticas