Sobre “Corpos Velhos — Para Que Servem?”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readOct 24, 2023
Cena de Corpos Velhos — Para Que Servem em sua estreia, na Bienal Sesc de Dança, no Sesc Campinas. Créditos: Matheus José Maria

A pergunta que Luis Arrieta faz — acompanhado de outros grandes nomes da dança brasileira — reverbera, em diversos âmbitos, ao longo (e para além) do espetáculo.

Para que servem os corpos velhos é uma pergunta urgente a ser feita num país (e num continente) que luta para equacionar questões de previdência social e aposentadoria. É uma pergunta pungente a ser feita numa sociedade de produtivismo extrativista, onde seu valor só pode ser medido por aquilo que você produz e pelo modo como você contribui para que o sistema siga operando. E é uma pergunta pertinente a se fazer na dança, este campo de sensibilidade poética atrelada à alta performance, ao esforço, ao desgaste físico, ao elogio ao corpo e às suas maravilhas.

Em determinado momento do documentário apresentado no início da apresentação, Arrieta comenta para seus colegas algo como “É claro que vai doer. Mas o corpo vai doer se dançar, e vai doer se não dançar. Então é melhor dançar.” No espetáculo que se segue, é isto que se vê.

Não se dança apesar, mas se dança a partir, através, ao redor, com. Não se dança apesar de o corpo estar velho, se dança na potência da velhice, da história que aquele corpo traz à cena; se dança um gesto cheio significados que existem porque nele há a história de uma vida, visível no tônus muscular, na velocidade, na superfície da pele.

Dançar é, na argumentação do espetáculo, tanto uma escolha quanto uma necessidade inegociável do corpo. Voltar à cena, lançar-se à tormenta que é a sala de ensaio e o palco, é ouvir o que o corpo que sempre dançou quer fazer: seguir dançando.

É fazer aquilo que nós, artistas, fazemos em qualquer época de nossas vidas: a dor existe, estejamos fazendo arte ou não. Melhor fazê-la então.

Cena de Corpos Velhos — Para Que Servem em sua estreia, na Bienal Sesc de Dança, no Sesc Campinas. Créditos: Matheus José Maria

A beleza de Corpos Velhos — Para Que Servem? está na delicadeza das suas respostas à pergunta-título. Não servem para nada (afinal, em última instância, para que serve um corpo?) e servem para tudo que cabe num palco.

Dançam, assim como dançam as companhias de alta performance e alto impacto, elogiando seus corpos. Dançam elaborando respostas, inquietações, fragilidades e teorias como quaisquer outros dançarinos atualmente em cartaz o fazem: com seus corpos ali, em risco, expostos, negociando suas próprias limitações, deparando-se com suas próprias implosões, impulsionando-se em suas próprias potências.

O corpo, superfície/ferramenta/assunto/objeto de seu ofício e também interface com o mundo está lá, pulsando e presente. Presentes também estão as dores, angústias, necessidades, belezas, vontades, sonhos, potências, pausas, respiros e delicadezas deste corpo. O corpo segue dançando tanto porque pode dançar quanto porque precisa dançar, tudo tão interligado que poder e precisar são uma coisa e a mesma.

O corpo dança porque sabe dançar e porque tem coisas que só sabe falar (e sentir, e aprender) dançando. O corpo dança porque a dança cobra seu preço — no corpo, mas não só — mas o preço de não dançar é pior.

Acompanhado de outros pioneiros da dança brasileira — Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada — , Arrieta não só percebe o ato de dançar como um ato de rebeldia e de insurreição como dança uma carta de amor a seu ofício.

Ver tantos nomes importantes da dança reunidos no mesmo palco, neste contexto, não só é bonito porque é sempre bonito ver a história manifestada sobre o tablado e sob os refletores; é bonito porque, juntos, eles misturam viver e dançar, sua própria vida é o tecido da sua dança, sua bagagem, história e repertório são os fôlegos dos seus passos e gestos.

Dançam no duplo significado de contar o tempo: contam o tempo da coreografia contando o tempo de suas vidas e de seus corpos — tudo se mistura e se retroalimenta.

No jogo de aproximar e misturar para ressignificar (dançar/viver, potência/fragilidade, parar/seguir etc) , os corpos velhos em cena respondem para que servem do jeito que respondem há decadas: dançando.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Para maiores informações sobre o projeto, entre em contato.

SERVIÇO
25/10 — Quarta, às 20h
26/10 — Quinta, às 15h
No Sesc Consolação — R. Dr. Vila Nova, 245 — Vila Buarque, São Paulo — SP, 01222–020

Direção geral: Luis Arrieta
Artistas: Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Luis Arrieta, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada
Assistente de direção: Lumena Macedo
Assistente Técnico: Fábio Villardi
Iluminação: Silviane Ticher;
Vídeo: Vinícius Cardoso
Coordenação Projeto: Portal MUD (Talita Bretas)
Fotos: Arnaldo Torres, Emidio Luisi, Gil Grossi e Silvia Machado
Edição de trilha sonora: Marcos Palmeira — com músicas de Guilherme Vaz e Mercedes Sosa
Produção: Corpo Rastreado — Danusa Carvalho e Gabi Gonçalves
Apoio: Ballet Stagium, Fábio Villardi e Loty Okada

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica