Sobre “Conjugado”

Tudo, Menos Uma Crítica
3 min readNov 24, 2023
Paula Praia em Conjugado. Foto: Noelia Narjera

Há alguns anos, o fotógrafo romeno Bogdan Gîrbovan realizou um ensaio onde clicava diversos apartamentos do mesmo prédio de Bucareste: o layout de todos era o mesmo, mas todo o resto era singular.

Sob o olhar de Gîrbovan (com alguma referência estética e de iluminação de Edward Hopper), os cliques revelavam questões sociais e políticas da capital da Romênia — moradia, solidão, velhice, turbulências econômicas etc — ao mesmo tempo que demonstravam a profunda individualidade dos moradores de cada apartamento. A planta de todos era a mesma, mas cada pessoa habitava e projetava um universo único, pessoal e intransferível, visível não só nos espaços habitados da casa mas, sobretudo, no espaço vazio ao redor.

Conjugado, trabalho da A Próxima Companhia, avizinha-se ao trabalho de Gîrbovan, ao mesmo tempo em que aprofunda os estudos do coletivo sobre habitação, mobilidade urbana, trabalho e renda na cidade de São Paulo e as pesquisas de campo em ocupações de moradia que também ampararam os espetáculos anteriores do grupo.

Responsável pela concepção e pela dramaturgia do espetáculo, Paula Praia traz à cena sete personagens para tecer uma mandala de temas variados, mas interseccionáveis. No palco, assuntos como aborto, ser mãe solo, tráfico humano, família, ancestralidade, amizade, relações profissionais que vão das abusivas às análogas à escravidão), fé, sexualidade, envelhecimento, abandono feminino carcerário, especulação mobiliária, concentração de renda, entre outros, surgem e entrecruzam-se, repetem-se explícita e implicitamente, reaparecem sob outros nomes e formatos, em primeira ou terceira pessoa.

A dramaturgia é hábil em tratar destes temas com leveza, sem que isso seja confundido com leviandade: aponta-os com força, dá tempo e espaço para que eles respirem e se expandam em cena, ao mesmo tempo em que os contrabalanceia com humor — quer tratar suas personagens como pessoas complexas, vivas, e não limitadas pelos temas que estuda.

Também oferece um interessante jogo de aproximação e afastamento, compondo um todo mais intrincado do que suas partes individuais: é interessante acompanhar a história de cada uma das sete mulheres, mas é ainda mais interessante notar a complexidade do todo que elas formam, e o que este todo diz sobre o mundo para além do palco. É como se cada personagem fosse uma estrela, com brilho e vida próprios, mas observá-las em conjunto permitisse ver uma constelação mais complexa, de um desenho específico que só pode ser visto pela conjunção de todas.

A partir desta multiplicidade de temas e de personagens, o espetáculo pergunta sobre as possibilidades de se viver num grande centro urbano que se torna cada vez mais inabitável — tudo é caro, tudo é violento, tudo é apertado, não há moradia assegurada para todos, e a escassez de trabalho dignamente remunerado que possibilite viver numa cidade onde tudo é caro e onde não há garantia de moradia só verticaliza as tensões sociais latentes. Também pergunta (e esta é uma excelente questão) o que significa viver — e não sobreviver — neste contexto.

Paula Praia em Conjugado. Foto: Noelia Narjera

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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CONJUGADO
Concepção, Atuação e Dramaturgia:
Paula Praia. Direção e Preparação Corporal: Gabriel Küster. Cenografia: Caio Marinho. Figurino: Magê Blanques. Iluminação: Giovanna Gonçalves. Direção Musical: Laruama Alves. Mixagem e desenho de som: Leandro Goulart. Voz em off (amiga da Irene): Catarina Milani. Orientação de mímeses corpórea: Caio Franzolin. Operação de Luz: Giullia Kelly. Operação de som: Juliana Oliveira. Criação de vídeo e teaser: Weslley Nascimento. Design Gráfico: Magê Blanques. Produção: Juliana Oliveira. Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini. Fotografia: Noélia Najera. Realização: A Próxima Companhia.

Até 27/11. Sábados e domingos, 19h; segunda, 20h.
Endereço: A Próxima Companhia — Rua Barão de Campinas, 529 — Campos Elíseos — São Paulo — SP
Ingressos: R$ 15,00 (meia entrada) e R$ 30,00 (inteira)

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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica