Sobre “Caso Cabaré Privê”
Olá, pessoa que eventualmente lê esse Medium. Como estamos nesse 2020 muito louco? Pois é, eu também.
No meio desse mar de humilhações constantes, que vão desde ter que desinfetar todas as compras do mercado (e achar que esqueci alguma dobrinha de algum pacote) até questões maiores e complexas, algumas coisas me mantém bastante instigado — uma delas, por exemplo, é a investigação sobre teatro online (uso aqui esse termo na falta de algo mais definitivo e melhor cunhado), suas particularidades e suas potências.
Claro, a pandemia nos pegou a todos de surpresa e fez com que nós, artistas da cena, tivéssemos que não só sobreviver à porra do apocalipse, mas também começar ou aprofundar pesquisas sobre a virtualidade numa velocidade impressionante. Se pensarmos que o distanciamento social foi proposto em março e já temos coisas estreando ou cumprindo temporada — e mesmo já saindo de cartaz — , é de se louvar a iniciativa e inventividade daqueles e daquelas que toparam se meter nessa empreitada.
Com diferentes níveis de engenhosidade, indo dos streamings mais convencionais estilo um-ator-e-uma-câmera-ligada até iniciativas multiplataformas que concatenam diferentes aplicativos e sites em prol da experiência imersiva, essas iniciativas de arte tecnomediada podem, se não se consolidar como uma vanguarda e uma linguagem por si só, pelo menos apontar outras possibilidades aos artistas das cenas em suas produções futuras.
Soma-se a esse bando o Núcleo Pequeno Ato e seu Caso Cabaré Privê, que mal estreou e já estendeu a temporada até 20 de setembro. Com dramaturgia de Tainá Muhringer e Felipe Aidar e concepção e direção de Pedro Granato, Caso Cabaré Privê navega com certa tranquilidade nas águas quase nunca dantes exploradas do teatro online, ao mesmo tempo em que mapeia novos territórios de possibilidades.
Na trama, um possível assassinato dentro de um Cabaré é o ponto de partida de uma investigação da qual os espectadores são convocados a participar ativamente, como detetives. Cabe a nós, então, nos engajar na experiência não de modo passivo, mas com bastante agência; afinal, o desenrolar da experiência não depende só dos performers, mas de nós também. Ou, antes: somos todos performers, dentro do tabuleiro proposto.
Essa é a maior fragilidade e,ao mesmo tempo, potência de Caso Cabaré Privê, uma vez que a investigação pode ir para lugares muito interessantes ou muito enfadonhos dependendo dos investigadores. Em diversas situações, me vi compartilhando a investigação com pessoas que faziam perguntas absolutamente irrelevantes — ou, pelo menos, irrelevantes pra mim.
Frustrante, irritante, surpreendente e satisfatória (muitas vezes, os quatro ao mesmo tempo), essa é a experiência. Não tem tanto a ver com o resultado final ser bem ou mal lapidado, nem com a qualidade das atuações, ou com outros índices de avaliação desse tipo; tem a ver com estarmos todos construindo a experiência, coletivamente e ativamente (tanto quando a encenação e dramaturgia dão espaço para isso e sutilmente nos encaminham para os caminhos pré-definidos), com o ônus e o bônus disso. Somos todos, em alguma medida, performers e co-dramaturgos, à medida que desbravamos a investigação.
Isso se dá, fundamentalmente, porque a dramatugia de Muhringer e Aidar e a encenação de Granato funcionam como uma rede de segurança que permite que os espectadores/performers/coautores se joguem e explorem novas vistas enquanto saltam. Podemos explorar à medida que pulamos, podendo descobrir coisas novas no trajeto, mas de algum modo a dramatugia e encenação sempre nos devolvem aos rumos, com alguma sutileza e elegância. É quase como quando estamos aprendendo a dirigir, e podemos guiar o carro com alguma autonomia, mas sempre tem alguém no banco do lado pra nos aconselha a não mudar de faixa agora, ou pra pegar o volante caso estejamos prestes a cair num barranco ou algo do tipo.
Fiquei me perguntando, em alguns momentos da investigação se todas as pessoas que compartilhavam a sala comigo eram espectadores incautos como eu, ou se eram membros da equipe infiltrados, pra quebrar o gelo sempre que alguém não queria começar a entrevistar os suspeitos ou pra fazer perguntas-chave sempre que os investigadores estavam meio distraídos com coisas menos relevantes. Mas suspeito que a pergunta fundamental não é “será que tem infiltrados aqui?” e sim “isso importa?”, afinal se estamos todos na postura de investigadores e na potência de co-autores da dramaturgia, é praticamente irrelevante se tem alguém que sutilmente conduz nossos olhares para coisas relevantes à investigação ou se tem gente que faz as perguntas mais irrelevantes possíveis: tudo, tudo, é dramaturgia, tudo é uma engrenagem na máquina, tudo faz parte da experiência.
A dramaturgia de Caso Cabaré Privê, é bom lembrar, não está só circunscrita à experiência de cerca de duas horas no Zoom e ao intercâmbio entre investigadores e investigados: ela está presente também no e-mail que recebemos antes de logar, está presente no dossiê para o qual recebemos o link e devemos estudar, está num canto de um cenário (“ei, que planta é aquela naquele vaso?”), está nas pesquisas que fazemos na internet pra entender o que é determinado elemento, e está nos “créditos finais”, que apontam os resultados e as repercussões da investigação. É interessante, pois dilata a experiência e nos coloca na circunstância antes mesmo da sessão começar.
Muito tem se dito de que teatro online não é teatro, porque não promove o “encontro” entre artistas e espectadores, e porque não tem “presença”. Eu, particularmente, acho esses argumentos bastante frágeis: acho que as pessoas confundem fisicalidade com presença — eu já estive fisicamente diante de uma área cênica, mas mentalmente em qualquer lugar, menos lá; e já estive fisicamente e mentalmente presente, mas os atores cagavam se eu estava lá ou não, de tão interessados que estavam em suas próprias bolhas, e dane-se se tinha alguém assistindo ou não. E tenho certeza que vocês já passaram por isso também.
Tenho a impressão de que presença e encontro independem um pouco da fisicalidade e podem existir também no campo virtual e online. Veja, ninguém estava fisicamente próximo durante a sessão de Cabaré Caso Privê da qual eu participei, mas é inegável que estávamos presentes, às vezes levando a investigação adiante e às vezes batendo com a cara na parede, e que estávamos num encontro, já que a experiência era coletiva.
Caso Cabaré Privê se une a outras experiências artísticas tecnomediadas que, muito mais do que responder se isso “é ou não é teatro”, reflete no campo do “olha, a partir desta tecnologia podemos chegar nesse resultado e engajar o público nesse tipo de experiência”. E essa é uma investigação interessante pra caralho.
Ficha técnica:
Concepção e Direção: Pedro Granato. Dramaturgia: Tainá Muhringer e Felipe Aidar. Assistente de Direção: Felipe Aidar. Elenco: Andressa Lelli, Bella Rodrigues, Bruna Martins, Carolina Romano, Claudia Garcia, Gabriela Gonzalez, Gustavo Zanela, Helena Fraga, Jade Mascarenhas, Letícia Calvosa, Ludmilla Cohen, Luiza Guilien, Isabella Melo, Manuela Pereira e Renan Ramiro. Detetive: Felipe Aidar. Convidado Especial: Thiago Albanese. Videomaker e Operador de Zoom: Gustavo Bricks. Direção Musical: Pedro Monteiro. Direção de Arte: Renan Ramiro. Figurino: Isabela Mello e Gustavo Zanela. Confecção de Figurino: House of Le Blanc. Coreografia: Ines Bushatsky. Fotos: Ana Alexandrino. Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli. Produção: Pequeno Ato e Contorno Produções. Direção de Produção: Jessica Rodrigues e Victória Martinez
Serviço:
CASO CABARÉ PRIVÊ estreou dia 1 º de agosto.
Temporada: De 1 º de agosto a 20 de setembro. Sábados 21h e Domingos 20h.
Duração: 90 minutos.
Classificação etária: 16 anos.
Ingressos: A partir de R$20.
Capacidade: 50 espectadores.
Venda ingressos e acesso à transmissão: Sympla.com.br/pequenoato
Especificação técnica: baixar o aplicativo Zoom, preferencialmente no PC ou notebook. Também é possível assistir por tablet, celular ou emparelhamento com Smart TV.