Sobre “Bom Dia, Eternidade”

Tudo, Menos Uma Crítica
6 min readMar 27, 2024
Bom Dia, Eternidade. Foto: Noelia Nájera

Há algum tempo, eu vi num perfil do Instagram uma postagem que dizia “escreva como quem diz: estou vivo”.

Ainda que eu ache a fase instagramável demais, viralizável demais, feita demais para virar estampa de camiseta vendida a R$89,90 em lojas online ou pra virar desenho de capa de moleskine genérico vendido em galeria multimarcas de bairro chique da cidade (R$ 115,00 a unidade, mais R$ 5,00 se você quiser embrulhar pra presente), sei lá, achei algo bonito nesse convite-conceito.

Nas últimas semanas, quanto mais eu lembrava de Bom Dia, Eternidade, o mais recente trabalho d´O Bonde, mais essa frase voltava à minha mente. Me parece que, em alguma medida, o espetáculo que fecha a Trilogia da Morte também tem essa pulsão. É teatro como quem diz: estamos vivos e continuaremos vivendo.

As palavras-chave nesse caso são “estamos vivos”. No plural. No coletivo. Não apenas os quatro atores da companhia, não apenas os quatro músicos-atores convidados, mas a comunidade que a peça funda — que começa no palco, mas que extrapola para a plateia e, de lá, para fora do teatro.

Bom Dia, Eternidade. Foto: Noelia Nájera

Na sessão que eu assisti, dois homens foram ao banheiro no meio do espetáculo, porque ficaram emocionados com os modos como a história no palco se cruzava com as suas próprias histórias. Nos relatos que eu ouvi de conhecidos, mais de uma vez as pessoas param na fachada do Teatro Anchieta para ver o banner: os rostos que estão no banner, os corpos que estão no banner, as idades que estão no banner, o tempo de vida que está no banner, as memórias que estão no banner, a utopia (para pegar emprestada uma das palavras usadas no próprio release) que está no banner.

Esse reconhecimento que a peça causa nas pessoas da plateia (ou mesmo nas que só veem o banner), a noção de identificação, de familiaridade, de pertencimento, de coletivo, tudo isso vai ao encontro daquilo que, me parece, é o projeto do espetáculo: estruturar um futuro.

É bonito que a peça comece pelo final, pelo “finício”, porque diz para onde a peça aponta: o fim imaginado, o fim ideal, aponta uma vontade, um desejo, um objetivo. Uma vez definido o objetivo, e uma vez instaurada a pulsão de vida coletiva — que começa no palco, mas que extrapola para a plateia e, de lá, para fora do teatro — , começa-se a desenhar o futuro onde esse final imaginado possa ocorrer. O final traz em si o espaço onde o futuro pode existir para que o final seja possível. Como uma profecia autorrealizável, como a planta-baixa do futuro.

Fico falando tanto sobre futuro, porque sinto que a peça traz em si a vontade — e a evocação — de um futuro. Falo tanto disso porque, me parece, a terceira etapa da Trilogia da Morte fala da vida que corre nas duas direções: para o futuro, pensando na longevidade, e para o passado, pensando na memória. Fala da vida integral, que é longa, e que é digna, que é vivida como uma celebração, coletiva, saudável, em família, rindo com os irmãos, colecionando bibelôs, dançando na gafieira, tomando café, fazendo música, sonhando novos futuros para aqueles que virão depois e depois e depois e depois, amparados naqueles que vieram antes e antes e antes e antes e…

Tudo sempre no plural, no coletivo.

Bom Dia, Eternidade. Foto: Noelia Nájera

Quando O Bonde joga a peça para a plateia — por exemplo, quando batiza a matriarca da família com o nome da mulher com mais idade assistindo àquela sessão — , reconhece que a família da qual a peça fala é muito maior do que as pessoas no palco. Emaranha a ficção, a autoficção, a realidade e a utopia (essa palavra que aparece no release, e que pulsa na peça o tempo todo… e é tão bonito um teatro que mira na utopia, né?).

Diz o Filipe Celestino: “Estamos construindo uma grande utopia, em que os negros envelhecem de forma saudável e digna”.

Uma utopia que olha pro futuro ciente do presente e do passado. A casa que foi tomada e que agora é reintegrada ecoa a história do país, e a própria ideia de nação — o que significa ser um país, o que pode um país, a quem pertence um país, quais as histórias desse país, quem vive nesse país, quem demole esse país, quem retoma esse país.

Da mesma forma, a ideia de familia ecoa noções de ancestralidade centenárias — de novo: quem veio antes e quem virá no futuro. A casa foi habitada por quem veio antes, e será habitada por quem virá amanhã.

Bom Dia, Eternidade. Foto: Noelia Nájera

Em Quando Eu Morrer, Vou Contar Tudo a Deus, primeiro trabalho da Trilogia, O Bonde diz que todas as histórias são sagradas. Agora, segue dizendo isso: todas as histórias são sagradas e devem ser contadas até o seu final — ainda que não haja final, já que as histórias seguem sendo contadas por quem vem depois, seguem inspirando, seguem enriquecendo. Seguem compondo uma trama complexa, rica, que avança para um futuro enriquecido pelo passado.

Em seus últimos trabalhos, O Bonde tem investigado as experiências de quase morte do corpo negro. Nisso, mantém em foco as potências de vida do corpo negro.

Fazer algo como quem diz “estamos vivos”. Às vezes isso pode resultar só num post de Instagram. Mas, às vezes, pode resultar em criar uma peça, planejar o futuro, plantar uma gameleira.

Bom Dia, Eternidade
Esteve em cartaz de 20 de janeiro a 25 de fevereiro de 2024 no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo, e volta em cartaz em breve.
Idealização: O Bonde
Elenco: Ailton Barros (Carlos), Filipe Celestino (Everaldo), Jhonny Salaberg (Renato) e Marina Esteves (Mercedes)
Músicos em cena: Cacau Batera (bateria e voz), Luiz Alfredo Xavier (violão, contrabaixo e voz), Maria Inês (voz) e Roberto Mendes Barbosa (piano e voz)
Dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Luiz Fernando Marques Lubi
Diretora assistente: Gabi Costa
Direção Musical: Fernando Alabê
Videografia e operação: Gabriela Miranda
Desenho de luz: Matheus Brant
Cenografia e Figurino: Luiz Fernando Marques Lubi
Acompanhamento em dramaturgia: Aiê Antônio
Música original: “Preta nina” — Fernando Alabê, Luiz Alfredo Xavier e Roberto Mendes Barbosa
Técnico de som: Hugo Bispo
Técnica de Videografia: Clara Caramez
Captação de vídeo: Fernando Solidade
Costura cenário: Edivaldo Zanotti
Cenotecnia e Contrarregragem: Helen Lucinda
Fotos: Júlio Cesar Almeida
Assessoria de imprensa: Canal Aberto — Márcia Marques
Social Mídia (criação de conteúdo): Erica Ribeiro
Produção: Jack Santos — Corpo Rastreado
Agradecimentos: Casa DuNavô, Coletivo Tem Sentimento, Família Barros, Família Celestino, Família Esteves, Família Martins, Família Salaberg, Guilherme Diniz, Grupo XIX de Teatro, Ilu Inã, Mercedes Gonzales Martins (in memoriam), Oficina Cultural Oswald de Andrade, Otávia Cecília (in memoriam), Teatro de Contêiner, Rogério de Moura e Willem Dias.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica