Sobre “As Bacantes”
Há algo de aterrador e também encantador no que o diretor René Piazentin, as assistentes Aline Baba e Carolina Loureiro, a preparadora Ana Carolina Salomão e todo o elenco propõem em As Bacantes, nova pesquisa do Núcleo TUSP.
A fisicalidade com a qual o grupo se aproxima da obra de Eurípides dá margem para diversas leituras, que transitam entre o horror e a admiração; a vontade de participar da turba em frenesi ciente de um mistério divino revelado apenas a ela, e o medo de aproximar-se demais do grupo em transe.
O grande mérito da pesquisa, que resultou numa temporada em novembro-dezembro no TUSP Maria Antônia, e volta em 2025, é criar um coro fisicamente poderoso o suficiente para demonstrar a intensidade do transe dionisíaco, ao invés de abordar uma psicologização das personagens, como se fosse um drama burguês.
Na brutalidade com a qual os corpos tremem, esforçam-se e suam, com a qual os músculos se contraem a ponto de distorcer a voz, e os centros de gravidade se ativam, propondo jogos de equilíbrio-e-desequilíbrio, vislumbra-se o poder orgiástico de Dioníso, e a igual dimensão de sua fúria.
Como num teste de Rorschach, cabe ao público tentar (se quiser), achar algum sentido mais profundo ou possibilidade de paralelismo na obra — sabendo, claro, que o que for visto neste sentido é resultado de projeção e diz mais sobre o espectador e suas expectativas do que sobre a obra em si.
Assim, As Bacantes é um conto moralizante sobre como não devemos desonrar os deuses? Talvez. É uma obra que indica a misoginia de Eurípides, que vê mulheres como histéricas e facilmente ludibriadas? Não sei, é? É um comentário contemporâneo sobre como o culto cego e irresponsável fomenta a barbárie e a destruição de um país a partir do fundamentalismo, da violência e da intolerância, ressoando o Brasil de hoje? Pode ser, ou não.
A multiplicidade de possibilidades de leitura não quer dizer, obviamente, que a equipe criativa não tenha algo a dizer com esta encenação, ou que ela transfira ao espectador esta responsabilidade. Muito é dito e muito é manifestado a partir dos corpos e do estado específico no qual o elenco está em cena. Muito pode ser fruído na intersecção entre horror e fascínio, transe sublime e episódio maníaco na qual o coro está inserido — e, por extensão, toda a encenação. Há muito para ser lido, desvelado, fruído, destroçado em êxtase.
Mas, em alguma medida, todas essas camadas de fruição são melhor acessadas pelo próprio corpo. Como o seu corpo se sentiu em meio à temperatura da sala, ao suor e à saliva, aos suspiros e gemidos, aos tremores e desequilíbrios? Como o seu corpo reagiu àqueles corpos? Que tipo de inteligência seu corpo manifesta diante daquele coro?
Pelo menos para mim foi um jeito ótimo de fruir o novo trabalho do Núcleo TUSP: num diálogo entre a inteligência do meu corpo junto/versus/em ressonância à inteligência daqueles corpos. Como numa dança, num transe, numa luta ou num sparagmos.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena e @cena.aberta.teatro , junto à produtora @corporastreado
Elenco: Ana Carolina Salomão, Beatriz Nauali, Caio Leroy, Denise Magalhães, Ela de Meira, Fabi Carvalho, Gabriella Aly, Iaiá Toledo, Laura Hanek, Loic Damiani, Malu Paixão, Marcello Ramos, Mau Ribeiro, Natália Martins, Maria Eduarda Pecego e Simone Heitor
Direção, adaptação, pesquisa musical e desenho de luz: René Piazentin
Assistência de direção: Aline Baba e Carolina Loureiro
Figurinos: Aline Baba
Preparação de elenco: Ana Carolina Salomão
Registro do processo: Carolina Loureiro
Preparação musical e tratamento sonoro do espetáculo: Gabriella Aly, Mau Ribeiro e Caio Leroy