Sobre “Apossinarmológuissi”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readDec 9, 2023

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Apossinarmológuissi — Magiluth + Quatroloscinco, em cartaz no Sesc 24 de Maio

Com mais de 3 décadas de história somadas, Magiluth e Quatroloscinco são, atualmente, dois dos mais importantes grupos de teatro em atividade no nosso país, tanto pela sua pesquisa contínua em dramaturgia autoral, pela investigação das chaves de atuação muito particulares nas quais cada coletivo opera e também (e principalmente neste trabalho), pela habilidade de continuar ativos, em grupo, depois de tanto tempo — e tudo o que isso o que isso significa técnica, ética e poeticamente.

Em Apossinarmológuissi, os dois grupos se unem numa espécie de Megazord (ou um Capitão Planeta, se você for dos anos 1980) teatral: a junção dos coletivos forma um uber-grupo, onde suas identidades individuais ora interseccionam, ora friccionam-se entre si, e ambas as possibilidades são utilizadas como insumo cênico.

Apossinarmológuissi — Quatroloscinco + Magiluth , em cartaz no Sesc 24 de Maio

Apossinarmológuissi é uma desmontagem de uma peça. A desmontagem de uma peça que não existe, mais precisamente. Uma “desobra”, segundo o release. Em sua verve pendular, o espetáculo constrói cenas e imagens para implodí-las na sequência. É como observar as ondas do mar, que surgem, crescem e arrebentam, para que novas ondas surjam no seu rastro. É bonito ver o que cada onda tem de único (sua altura, sua força, sua espuma, o que ela traz para a praia), como também é bonito perceber o movimento do mar que elas compõem.

Em sua estrutura metalinguística, é uma peça de teatro que não apenas olha para o que significa fazer teatro, mas para o que significa fazer teatro em grupo: estar com o outro, depender do outro, estar em bando, somar sua voz a outras vozes, assustar-se ao perder sua voz em meio às outras vozes, espantar-se ao ver o quão forte sua voz se torna somada às outras vozes, o odiar e o amar estar no teatro acompanhado dessas pessoas com quem você compartilha seus sonhos (não sem às vezes querer estrangulá-las com o cabo do refletor), tudo isso borbulha no oceano de Apossinarmológuissi e agita suas ondas.

Apossinarmológuissi — Magiloscinco , em cartaz no Sesc 24 de Maio

Nesta investigação, os Magiloscinco chegam a lugares muito sensíveis, muito delicados — a solidão de estar em bando, a angústia de chegar quase lá na criação de uma cena, o frio na barriga vertiginoso que dá ao se jogar de cabeça numa sala de ensaio, a utopia que é sonhar em conjunto — sem escorregar no sentimentalismo.

O humor que empregam tem um papel fundamental nisso. Há sempre um tipo muito específico — muito magiloscinquiano — de humor rondando a cena, sempre na periferia, ainda que nem sempre no centro do palco.

O humor que corre subjacente pelo espetáculo não nega os momentos de sensibilidade e fragilidade do elenco: de fato se expõem e são verdadeiros nos seus nervos eventualmente expostos. Mas o humor funciona como um contrapeso que evita que o espetáculo caia numa autoindulgência, ou numa sessão de terapia coletiva. Existe uma honestidade brutal em algumas passagens, existe uma sensibilidade caótica nos ensaios de A Gaivota, existe a fragilidade da figura de Lucas (paradoxalmente, uma das maiores forças do espetáculo), mas existe também um humor sardônico (sem ser cínico) que evita que o que esses momentos se dilatem tanto que diluam.

Este humor não nega ou anula o que o espetáculo traz de sensível e honesto. Muito pelo contrário: os Magiloscinco são, com a mesma integridade e honestidade, Nina e Kóstia ou Sonic e She-Ra; fracassam honestamente e superam honestamente, como quem sabe, depois de tanto tempo juntos, que fazer teatro em bando é tudo isso: é bonito, é forte, é radical, é revolucionário, é poético, é utópico, é sensível… mas é um quê de bobo, de ridículo, de engraçado — e sem uma boa camada de riso, de levar-muito-a-sério-sem-levar-tão-a-sério-a-ponto-de-se-perder não é possível seguir.

Assim, há algo de muito bonito na estrutura de Apossinarmológuissi, no equilíbrio entre a fragilidade, sensibilidade e vulnerabilidade que se mistura com o humor safado que dá uma piscadela para a plateia; nas cenas que são como bolhas de sabão, aparecendo muito bonitas, muito iridescentes e também prestes a estourar.

Acho essa uma metáfora bonita para o fazer teatro em grupo: essa busca, essa busca, essa busca, essa puta frustração, esse esforço, esse cavoucar a sala de ensaio até encontrar algo valioso (que pode ou não estar prestes a estourar), que é aflitivo e delicioso, terrível e sublime, e que é ainda mais foda quando a gente tem sorte o bastante de poder sonhar junto com nosso bando de patos.

Apossinarmológuissi
Elenco: Assis Benevenuto, Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Ítalo Laureano, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral, Rejane Faria.
Atriz e Iluminadora Convidada: Marina Arthuzzi
Dramaturgia: Assis Benevenuto e Giordano Castro.
Direção: Grupo Magiluth e Grupo Quatroloscinco.
Colaboração Criativa: Marcos Coletta e Pedro Vagner.
Produção: Ítalo Laureano
Realização: Grupo Magiluth e Grupo Quatroloscinco.

Até 10/12 no Sesc 24 de Maio
Sáb 20, dom 18h.

__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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