Sobre “Alma Despejada”

Tudo, Menos Uma Crítica
3 min readJan 14, 2020

--

Uma casa é um museu sobre seus habitantes, diz o ditado. No lugar onde fincamos raízes, também deixamos rastros e camadas e camadas de história.
De certa forma, é sobre isso que fala Alma Despejada, monólogo de Irene Ravache a partir da dramaturgia de Andréa Bassitt e direção de Elias Andreato.

Ravache interpreta Teresa, mulher que morreu há algum tempo mas que ainda frequenta, eventualmente, a casa onde viveu desde que casou e constituiu família. Às vésperas da chegada dos novos moradores e da perda irrevogável do referencial de lar, Teresa passa a vida em revista entre as caixas cheias e as paredes vazias.

Claro, o conceito de “lar” é investigado ao longo do espetáculo: refere-se à edificação onde estabeleceram residência, mas também à família de onde se veio e que se deixa e refere-se ao país que se habitou. Assim, Teresa fala de si, mas fala de uma parcela da sociedade, inserida num contexto social, político e financeiro.

Talvez meus incômodos com a dramaturgia surjam justamente da abordagem (na minha opinião) leve demais sobre esses temas. Sinto que ao desenhar Teresa, o espetáculo é às vezes meio ingênuo ou meio conciliador demais…suspeito que se fossem mostradas algumas contradições da personagem, tudo se beneficiaria, ela fosse mais interessante. Digo isso porque, no final, quando apresenta-se a questão do marido e da empresa, há uma ótima oportunidade para criticar certos comportamentos, visões de mundo e práticas muito comuns à contemporaneidade, e terrenos mais cinzas moralmente poderiam ser adentrados; mas a crítica, se há, me parece meio rasa, ou rápida demais.

Isso é um problema intrínseco ao texto? Bem, me parece que é mais uma escolha do que um defeito e que não seria muito justo julgá-lo pelo que eu gostaria que ele fosse e pelas minhas expectativas que não foram atendidas. Mas não consigo parar de pensar que talvez coisas interessantes surgissem caso ele se aprofundasse mais ou se demorasse mais nesse tema.

E pra você que já assistiu a espetáculo? As coisas soaram assim para você também? Se sim ou se não, me conte: gostaria muito de saber como isso chegou às outras pessoas.

De todo modo, se existem aqui e ali alguns temas que eu gostaria que o texto abordasse de forma diferente (a relação entre Teresa e o marido e, sobretudo, entre patroa e empregada, que me parece meio caricatural), também existem momentos felizes, sobretudo o desenho do casal de homens que compra a casa da protagonista, que me pareceu escapar dos esteriótipos gastos reservados aos personagens homossexuais.

Se eu e o texto não nos demos tão bem, assistir a Irene Ravache em cena foi, por outro lado, uma experiência bastante feliz. É bonito de ver como ela lapida sua Teresa a partir de delicadezas, como ela preenche sozinha um palco tão grande e faz dele, de fato, sua casa e da platéia, seus hóspedes. Sempre soube que Ravache era uma grande atriz mas vê-la, de fato, me ajudou a realizar a coisa toda. Nisso cabe elogiar também a direção de Elias Andreato, que organiza todo o espetáculo para dar espaço para Ravache crescer.

Sensível, carismática, elegante, senhora de si e do palco, Ravache dá corpo e estofo ao espetáculo, equilibrando as passagens mais dramáticas e mais cômicas e cativando o público, que tendia a responder às deixas da atriz — eu, inclusive, fui um dos que ficou em suas mãos quase que o tempo todo, e bastante satisfeito em estar em mãos tão habilidosas.

Alma Despejada. Foto: João Caldas Filho

ALMA DESPEJADA
10 de janeiro a 28 de março de 2020
Sextas, às 21h30, sábados e domingos, às 20h
Teatro Folha. Shopping Pátio Higienópolis — Av. Higienópolis, 618 / Terraço. SP/SP.

Texto: Andréa Bassitt. Direção: Elias Andreato. Com Irene Ravache. Cenário e Figurino: Fabio Namatame. Iluminação: Hiram Ravache. Música: Daniel Grajew e George Freire. Fotos: João Caldas Filho. Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação. Produção: Oasis Empreendimentos Artísticos Ltda.

--

--

Tudo, Menos Uma Crítica
Tudo, Menos Uma Crítica

Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

No responses yet