Sobre “A Vida Útil de Todas As Coisas”

Tudo, Menos Uma Crítica
7 min readJun 14, 2019

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Dia desses, passei mal em casa e pedi pra minha colega de apartamento chamar um carro num aplicativo que me levasse no hospital mais próximo que atendesse meu convênio. Chegando lá: segundo a triagem é início de infarto, notificação de emergência, um enfermeiro disponibiliza uma cadeira de rodas, alertam a chefe da cardiologia, chego na Emergência e tem uma maca à disposição, um aparelho de ecocardiograma preparado, um desfibrilador do lado por via das dúvidas, uns quinze profissionais da saúde me olhando com cara de preocupados.

Uma enfermeira coloca os sensores no meu peito, outro prende quatro clipes de ferro nos pulsos e tornozelos, outro faz perguntas banais pra ver se eu tô consciente. E lá estou eu, sozinho, consideravelmente assustado, pensando que é, realmente eu devia trabalhar menos; é, eu realmente devia tomar menos cafeína; tentando lembrar se é verdade que ataques cardíacos são consideravelmente mais perigosos na minha faixa etária ou se é só paranoia ou se tem tantos profissionais a minha volta porque eu estou realmente mal ou se é porque é madrugada de quarta-feira e eles estão com tédio… quando uma funcionária do Financeiro vem até mim e me avisa que houve um engano, que o meu plano não cobria aquele tipo de procedimento e que eu devia esperar um pouco até que alguém viesse falar comigo sobre condições de pagamento e parcelamento para dar continuidade aos cuidados à minha saúde.

Entre morrer de ataque cardíaco ou me meter numa dívida exorbitante num hospital (logo eu que sou MEI, imagina), preferi arriscar e ir pra um hospital público. E agora aqui estou eu, com uma história ótima pra quebrar o gelo nas festinhas (já te contei daquela vez em que eu saí corrido de um hospital particular, perseguido pelo Financeiro, enquanto literalmente quase infartava?) e com a introdução de três parágrafos para um texto reflexivo sobre A Vida Útil de Todas As Coisas, que segue em cartaz na Oswald de Andrade até o dia 15 e que depois ocupa o Núcleo Experimental entre 28/06 e 21/07.

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Existe uma perigosa relação entre o capitalismo e a indústria da saúde, onde o tratamento de doenças, o bem estar e a qualidade de vida estão disponíveis no mercado, desde que haja lucro (não apareceu recentemente a denúncia de que um laboratório não disponibilizava remédios comprovadamente eficazes contra o alzheimer por não haver retorno financeiro satisfatório?). Assim, como em qualquer comércio, o que importa de fato é a venda de bens e serviços, não tanto a satisfação do cliente.

Esse é um dos tópicos em que A Vida Útil(…) toca: num mundo em que a substituição de órgãos originais por peças feitas em laboratório é uma realidade, quais questões éticas surgem?

Primeiro, me parece que o espetáculo se debruça sobre a relação pouco sadia que a nossa sociedade tem com a morte: isso que é algo natural em nossa vida é também algo que somos ensinados a temer e a tratar como um tabu, uma vergonha quase.

Também me parece que a peça mantém um olhar afiado sobre o que é que nos mantém humanos (são nossos originais de fábrica? os nossos óculos ou aparelhos auditivos ou próteses ou marcapassos alteram em algo isso? órgãos produzidos em impressoras 3D alterarão isso? réplicas idênticas de nossos amados, com suas memórias e alimentadas com algoritmos comportamentais específicos alterarão isso?), inclusive nas nossas falhas e fragilidades.

Existem também discussões sobre bioética e mercado bem pertinentes, tais como a obsolência programada (se ela já é uma realidade nos nossos smartphones, imagine como será com nossos órgãos encomendados), o timing da venda de produtos e planos (nada como aproveitar a fraqueza e confusão de quem acabou de perder seus entes queridos para capitalizar em cima de sua dor) e a burocracia kafkaniana que blinda os grandes conglomerados e mantém impotentes os cidadãos pequenos.

Me parece, inclusive, que há espaço para reflexão sobre a eutanásia e se é lícito manter vivo alguém depois que as condições de vida natural se esgotaram — e o que é vida natural mesmo, hein?

Ah, sim, e como o título indica, há a provocação sobre a utilidade e inutilidade das coisas e pessoas, e se seu valor é alterado a partir do momento em que sua produtividade decai. Qual o valor de um utensílio que não funciona mais? Qual o valor de um produto cujo prazo de validade expirou? Como essa pergunta se aplica a seres humanos (seja no núcleo familiar, nas relações de trabalho ou na sociedade: todos temos função? precisamos ter?)

São todas discussões muito férteis, e que me deixaram bastante excitado (tanto por interesse pessoal quanto pela raridade de discussões assim no teatro contemporâneo, apesar de sua abundância no audiovisual norte-americano — Westworld, Ex-Machina, Black Mirror, Love Death and Robots são alguns dos filmes e séries que me vinham à mente), e acho que elas por si só já bastam pra indicar A Vida Útil (…) mas também vale a pena elogiar o puta ator que é o Eduardo Semerjian e a puta atriz que é a Luciana Ramanzini. Até nos momentos mais frágeis do texto, ambos estão bem pra caralho, é ótimo vê-los em cena: ele impotente, raivoso, patético, com esse arco de cara que era alienado e obcecado com trabalho e vai se humanizando à medida que se assusta com a finitude do pai e da filha; ela cínica, sádica, engraçada pra cacete, sendo vilã sem ser maniqueísta (umas sutilezas muito bonitas da parte da atriz), num ponto cinza entre ser humana e inumana… e me parece que tem até o começo de debate sobre se sua personagem é uma pessoa real ou um ciborgue e quais seriam as repercussões desse fato, mas acho que a dramaturgia não vai muito além nesse aspecto.

Os dois, Ramanzini e Semerjian, tem até um timing cômico muito bom e que eu não esperava numa peça com esse tema e que faz muito bem à dramaturgia por garantir seus contrastes — embora eu não veja nenhuma justificativa para a cena em que o personagem de Semerjian batuca no ar, absorto, enquanto seu pai está sendo avaliado por médicos (esse não é o estado de espírito que eu vejo em salas de espera de clínicas ou consultórios, e esse traço de personalidade do personagem não aparece nem antes, nem depois dessa cena, deixando tudo assim, meio jogado)… mas mesmo nessa passagem e em outras das quais eu não gosto, o elenco encontra uma elegância possível. Sério, gosto muito dos dois.

Ainda falando das vezes em que eu sinto que A Vida Útil (…) pesa um pouco a mão(e sou aqui sou eu falando o que eu sinto, não uma verdade absoluta), talvez todo o choro e melodrama presentes na segunda metade do espetáculo sejam um jeito de sinalizar que, num mundo mecanizado e devotado ao lucro, e à produção, o que nos mantém humanos, além da nossa consciência de finitude, são nossas emoções e talvez essa seja uma reflexão pertinente, mas eu acho os momentos mais contidos da encenação melhor executados, talvez porque assim consiga refletir sobre as interessantes questões levantadas pela dramaturgia sem distrações ou sem grifos (ora, eu sei que perder uma pessoa amada é doloroso, eu sei que nos sentimos impotentes ao ver alguém que amamos adoecer e caducar, é realmente necessário sublinhar isso com música emotiva e verborragia?). Mas, de novo, sou só eu falando o que eu senti.

Se tem vezes em que eu acho que A Vida Útil (…) dá uns escorregões, isso não diminui os méritos do espetáculo, tanto no elenco, quanto nas interessantes questões levantadas, e no fato de que a platéia consegue se identificar com os conflitos apresentados: seja o medo de morrer, seja o medo de ficar debilitado na velhice, seja a impotência de ver alguém que você ama ir embora, seja o limite que você quer colocar no seu próprio corpo e o quão assustador é quando alguém ganha o direito de decidir no seu lugar o que é melhor pra você, seja a falta de dinheiro para comprar um órgão de última geração ou uma réplica exata de alguém amado ou simplesmente pra não precisar sair correndo da Emergência durante um quase infarto.

A Vida Útil de Todas as Coisas. Foto de Heloísa Bortz

SERVIÇO

A Vida Útil de Todas as Coisas, Kiko Rieser
Classificação:
12 anos
Duração: 95 minutos

Oficina Oswald de Andrade — Rua Três Rios, 363, Bom Retiro
Estreia dia 23 de maio de 2019
Temporada: 23 de maio a 15 de junho.
Às quintas e sextas, às 20h; e aos sábados, às 18h
Ingressos: Grátis, distribuídos uma hora antes da apresentação
Capacidade: 70 lugares
Informações: (11) 3222–2662

Teatro do Núcleo Experimental — Rua Barra Funda, 637, Barra Funda
Temporada: 28 de junho a 21 de julho
Às sextas e aos sábados, às 21h; e aos domingos, às 19h
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$10 (meia-entrada)
Capacidade: 65 lugares
Informações: (11) 3259–0898

Texto e direção: Kiko Rieser
Assistente de direção: Amazyles de Almeida
Elenco: Eduardo Semerjian, João Bourbonnais, Louise Helène e Luciana Ramanzini
Cenário: Marisa Bentivegna
Figurinos: Kleber Montanheiro
Iluminação: Aline Santini
Música original: Gregory Slivar
Visagismo: Louise Helène
Design Gráfico: Angela Ribeiro
Registro Fotográfico: Heloísa Bortz
Registro em Vídeo: Ricardo Montenegro
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Mídias Sociais: Gigi Prade
Direção de Produção: Selene Marinho
Produção executiva: Marcela Horta
Produtor Associado: Kiko Rieser

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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