Sobre “A Ponte”

Tudo, Menos Uma Crítica
4 min readFeb 6, 2019

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Talvez você note algumas similaridades entre A Ponte, do canadense Daniel MacIvor e As Três Irmãs, texto fundamental de Tchekhov. Em ambos os casos estão em cena três irmãs refletindo sobre as insatisfações do presente e as perspectivas do futuro, bem como lidando com as dores e expectativas do passado. Para além do espaço físico onde as personagens estão situadas, há também a citação a um lugar idílico, que marcou a vida das protagonistas no passado e que agora assume ares de norte, de Meca: a vida delas é pautada pela experiência neste lugar. No drama russo, ir a Moscou é uma necessidade, ao mesmo tempo que uma impossibilidade; no texto canadense, a ponte do título é ou palco de lembranças boas ou de momentos decepcionantes — ou de ambos.

Bom, não estou sendo genial ao perceber essas conexões. Na verdade, acho que todo mundo deve notar isso, inclusive o próprio MacIvor, que coloca na boca da personagem Agnes um aceno às produções teatrais contemporâneas que fagocitam clássicos. Assim, o interessante não é simplesmente perceber que MacIvor observa a estrutura tchekhovniana mas sim notar o que ele faz com ela.

MacIvor elabora um texto consideravelmente clássico (lembra um pouco Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill; lembra um pouco Tennessee Williams…) com picos de experimentação (os monólogos das personagens, com quebras de quarta parede), que são bem explorados pela direção de Adriano Guimarães (por exemplo, o modo como ele dirige estes monólogos e a exposição das rubricas pela TV, que remete, em certa medida, à relação das irmãs com séries e novelas). A partir desta estrutura, MacIvor fala sobre as famílias tradicionais e as estruturas menos convencionais(diferença de idade entre cônjuges; vida em comunidades religiosas; o desinteresse por uma vida social em comparação ao interesse por uma vida mediada pela televisão e outras ficções) e sobre o pêndulo de pertencimento/não-pertencimento ao qual estamos subordinados por toda nossa vida.

No fundo, no fundo, é um texto bastante otimista, que sugere que as fraturas do passado podem ser consertadas com afeto (embora, claro, afeto não seja a única coisa que paute as relações humanas, mesmo as familiares) e que é possível conviver com a diversidade, por mais estranhas e alquebradas que as pessoas sejam.

A encenação de A Ponte consegue fazer jus à dramaturgia, com a discreta direção de Adriano Guimarães dando espaço para que o bom texto de MacIvor fique em primeiro plano e com o hábil elenco conseguindo dar conta das transições entre comédia/drama e leveza/peso. Vale dar destaque à performance de Debora Lamm que, com bastante tempo de cena, trafega bem pela montanha-russa delineada por MacIvor e dá bastante textura à sua Agnes.

Se eu não gosto necessariamente de todas as escolhas da encenação — a concepção de cenografia é interessante, mas lembra tanto algumas propostas de Gritos e Sussurros, de Bergman, que talvez limite as leituras possíveis — , outras são consideravelmente potentes, como o final, não só pela boa resolução como pela coerência: se no monólogo de Louise, a personagem diz que não adianta dizer o nome de uma música, porque sempre haverá alguém que não goste dela, então é melhor simplesmente pedir para que cada um imagine a sua própria música, a direção não cria a imagem final proposta pela dramaturgia, mas provoca o espectador a criar a sua própria. Assim, cada um pode criar sua própria cena de alegria e satisfação. É uma excelente estratégia, que não só evita as esparrelas de encenar um final feliz (que sempre é um risco, já que pode ser só interpretado como “brega”, ou “irreal”, ou “forçado”), como também cede ao espectador alguma autonomia.

Assim, A Ponte mantém a tradição de boas montagens brasileiras a partir do excelente Daniel MacIvor. Um pouco menos experimental do que outros trabalhos do autor, como In On It (e se você for esperando este experimentalismo, talvez se frustre — e talvez essa expectativa seja bastante injusta com A Ponte) mas ainda assim, bem potente.

A PONTE
Até 25 de março.
Sexta, Sábado e Segunda às 20h;Domingo às 18h
Sessões extras: dias 21 e 28 de fevereiro e 07 de março, quintas, às 20h
Sessão com tradução em Libras: dia 22 de fevereiro, sexta, às 20h
Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo: Rua Álvares Penteado, 112. Centro
Ingressos: R$ 30,00

Texto: Daniel MacIvor
Tradução: Bárbara Duvivier
Dramaturgia: Emanuel Aragão
Direção: Adriano Guimarães
Elenco: Bel Kowarick, Debora Lamm e Maria Flor
Assistência de direção e stand in: Liliane Rovaris
Cenografia: Adriano Guimarães e Ismael Monticelli
Figurino: Ticiana Passos
Iluminação: Wagner Pinto
Direção de Movimento: Denise Stutz
Programação Visual e fotografia: Ismael Monticelli
Fotos de cena: Flavia Canavarro
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Produção Executiva: Adriana Salomão
Produção Local SP: Contorno Produções
Administração e Produção: Super Normal
Direção de Produção e Idealização: Bel Kowarick e Maria Flor
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Patrocínio: Banco do Brasil, Cateno e 3M

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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