Sobre a ocupação Magiluth + Quatroloscinco
___Caos/Vazio___
Em diversas mitologias e contos originários, o caos é o vazio primordial, de onde tudo surge e de onde tudo pode vir a surgir.
É o vazio que é impossibilitado de estar, de fato, vazio — é o vazio que é o prenúncio das possibilidades, pois está sempre prestes a ser preenchido, ocupado, está continuamente prenhe de potencial.
Ao longo de um mês, o grupo recifense Magiluth e o grupo belo horizontino Quatroloscinco residiram no CPT, dentro do Sesc Consolação, para entender, juntos, o que poderia surgir da fricção entre dois coletivos com quase duas décadas de história e metodologias muito particulares (ainda que, possivelmente, complementares). Ao longo de um mês, habitaram, juntos, o vazio.
O caos/vazio foi uma das matérias de estudo e do resultado da residência: como lidar com a angústia de uma sala de ensaios vazia, de onde pode sair tudo (inclusive nada)? Como dar o primeiro passo e ser o primeiro a botar o pé no tablado, e lidar com todas as possibilidades que podem surgir a partir deste ato, numa progressão geométrica que resultará (ou não) numa proposta, numa cena, ou numa rua sem saída? Como criar quando você mesmo se sente vazio, sem ter um assunto, um mote, uma ideia? Como lidar quando o vazio se torna tão cheio — de ideias, de vontades, de imagens, de vetores, de possibilidades, de assuntos, de jogos — que se torna sufocante?
Como lidar com o fracasso criativo? Aquela cena que quase ficou boa, aquele improviso que tinha ficado bacana, mas que ficou ruim quando foi ser repetido, aquela imagem genial que amarra todas as ideias e que você quase sabe qual é, mas que ainda não sabe dizer com certeza, aquela solução perfeita para o problema da encenação e da dramaturgia que está perto o suficiente para sua possibilidade ser sentida, mas ainda longe demais para ser agarrada, compreendida, compartilhada, posta no mundo.
Talvez, para explicar o estudo (e o resultado) desta residência, valha menos a pena contar uma eventual sinopse e mais fazer uma pergunta: você já entrou numa sala de ensaio? Como você se sente ao entrar nela? Como é o seu processo criativo? Quem são seus pares? Com quem você entra na sala de ensaio e joga, com quem você compartilha a tensão criativa e, sobretudo: com quem você compartilha os fracassos?
Foram essas as perguntas que esta quimera chamada Magiloscinco se fez ao longo da residência e que, me parece, são comuns aos artistas que eu conheço: armado de quê se entra no vazio, e amparado por quem?
Ainda que eles tenham uma resposta para essa pergunta, talvez você também queira respondê-la. Eu sei que eu tento respondê-la, com resultados às vezes mais e às vezes menos satisfatórios.
___O rebelde busca a tempestade como se lá houvesse paz___
Mikhail Lermontov, poeta russo do século 19, encerra seu poema Vela com os seguintes versos:
Mas ela, rebelde, pede tempestades,
Como se nas tempestades estivesse a calma!
É sobre a vela de um barco, mas não é sobre a vela de um barco. Pode-se dizer, pelo menos para os fins deste texto (e da residência), que é sobre o porque de se fazer arte.
Pode ser sobre aquela pulsão que nos leva de volta e de volta e de volta ao teatro, à sala de ensaio, sobre aquela vontade de mergulhar na tempestade caótica de uma sala de trabalho. Do mesmo jeito que a gente sabe que vai chover mais tarde porque sentimos a umidade do ar na pele e a estática na atmosfera, sabemos reconhecer aquela estática, aquela eletricidade de uma sala de ensaios prestes a explodir, do vazio prestes a ser rompido e dele algo surgir, como uma flor que desabrocha.
Pode ser sobre o porque de a gente buscar o caos da sala de ensaios e gostar dele. E sentir a paz desse caos.
No caos evocado/gerido/plasmado pelos Magiloscinco, a cena pode ser um espaço de reflexão sobre a Carreta Furacão, sobre a inexistência do nada, sobre o ChatGPT, sobre pintinhos coloridos de feira dos anos 1980, sobre coelhos trágicos ou sobre as palavras de acolhimento que um pai nunca disse ao filho gay. Porque a cena pode ser, afinal, uma tentativa de olhar para o futuro e de cicatrizar o passado.
A cena é uma possibilidade de inventar outros passados e futuros, uma tentativa de, pelo caos poético do espaço cênico, lidar com o caos do mundo.
___Fracassos e patos que voam juntos___
Volto à pergunta anterior: com o que você se arma ao adentrar no vazio, e quem te ampara? Quem te ancora, para que você não fique à deriva, e quem te puxa de volta à superfície para que você não se afogue?
É uma pergunta que Quatroloscinco e Magiluth se fizeram uns aos outros, recorrentemente, ao longo da residência. Não uma pergunta que precisava ser feita em voz alta, mas uma pergunta subjetiva, que era perguntada e respondida simultaneamente a cada novo jogo, improviso, proposta de cena, pausa para o café ou fila do almoço por quilo.
Porque, demonstram eles na residência, a metodologia do teatro de grupo que eles aplicam há quase duas décadas é essa: confiar nos pares e segurar as buchas. Ir pra cena juntos, se jogar de cabeça, confiar que quem está contigo no corre vai te dar forças, e que a sua força também vai energizar o resto do bando e que, se atirando de cabeça no vazio algo surgirá. E às vezes surge.
Mas muitas vezes também não surge. E aí é segurar as buchas, e se jogar de novo no vazio. E aí, talvez algo surja.
Mas muitas vezes, também não surge nem assim. E aí é segurar as buchas, se jogar de novo no vazio e quem sabe agora vai.
Mas muitas vezes, também não vai.
Aí é pausa pro cigarro, que a cena se resolve depois, ou bola pra frente que talvez no próximo edital dê certo, ou tudo bem que nesse festival não rolou, tem outro que abre inscrições logo mais.
O fracasso, em diversos momentos de improviso da residência foi um mote tão importante porque, afinal, o fracasso é uma constante na vida dos artistas. Mas outra constante, pelo menos no caso dos grupos de teatro (enquanto eles durarem) é ter os seus parças com você, pra dividir os perrengues e a breja.
Como os patos migratórios, que voam em formação e que sempre alternam a liderança do voo: um vai à frente, rompendo a resistência do ar e, quando se cansa, vai pro final da revoada e voa no vácuo dos colegas à frente, que abrem o ar enquanto este descansa.
Patos, disse o Lucas, são dotados de perfeito senso de comunidade e, portanto, seriam perfeitos para um grupo de teatro.
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