Sobre “A Grande Questão”
Eu não gosto muito de estar vivo.
Nunca pensei que eu ia ter esse pensamento sentado na plateia de uma peça infantil, quarta-feira à tarde, mas lá estava eu, cercado por 100 crianças, pensando que estar vivo não é necessariamente a minha parte predileta em… bom, em estar vivo.
Viver, essa efervescência de som, fúria, boletos, prazos, Google Spreadsheets a serem preenchidos, notas fiscais a serem emitidas, o quilo do peito de frango a R$ 22,00 no açougue da esquina, os microplásticos na água, a crise climática, o capitalismo tardio, todas essas coisas sem sentido ou porquê, sem razão ou plano de uma inteligência superior que zela por nós, essa aleatoriedade agônica… caraca, que cilada, meu irmão.
Enfim, aqui estamos nós, navegando nessas águas ora turbulentas, ora plácidas, ora traiçoeiras, ora acolhedoras, que são a experiência de estar vivos. Ou pilotando carrinhos de bate-bate num grande parque de diversões proverbial, nos chocando contra absolutamente tudo, ora rindo do impacto, ora pensando “esse filho da puta do carrinho amarelo tá tentando me matar?”… qualquer das metáforas que melhor funcione pra você.
E ainda assim, lá pelas tantas da sessão, tem uma hora em que o elenco faz flutuar uma bola branca, iluminada por uma luz negra, parecendo uma Lua neon, e começa a uivar pra ela. E aí, as cento e tantas crianças na plateia começaram a uivar também, uma matilha de centenas de lobinhos uivando para uma lua que brilhava no escuro — e isso me fez sorrir.
Aí a gente volta para a questão principal: o que você está fazendo aqui?
Isso mesmo. Você que está desperdiçando seu precioso tempo na Terra (ou enrolando até que o inevitável fim chegue) me lendo, com tanta coisa melhor pra fazer, o que você está fazendo aqui?
Essa é a pergunta que a Cia De Feitos faz, de novo e de novo, para a plateia. Na dramaturgia caleidoscópica de Carlos Canhameiro (que também dirige a peça), personagens entram e saem de cena num fluxo contínuo, lidando eles mesmos com essa grande questão.
Não existem respostas para essa pergunta (você que se vire pra achar uma resposta que te satisfaça hoje, e torça para que a mesma resposta te satisfaça amanhã, ou boa sorte com a angústia existencial que vai vir), apenas observações de possíveis fragmentos de resposta.
Talvez, viver tenha a ver com se reconciliar com o tempo da espera, como sugere a cena do jardineiro que planta sementes que a plateia (ou mesmo ele) nunca verá germinar e crescer: talvez, indo na contramão do fast food, das entregas a jato no dia seguinte, caso você conclua a sua compra até as 18h50 e esteja disposto a pagar mais R$ 15,90 de frete, ou dos TikToks de 30 segundos, viver tenha a ver com entender o tempo lento das coisas, o tempo da contemplação das nuvens que passam pelo céu, das plantas que germinam, e com a compreensão de nossa impotência perante o tempo, que passa inexoravelmente, mas em seu próprio ritmo — não se acelera o crescimento de uma planta, nem o processo de feitura do pão, afinal.
(Mas, então, o que você faz com todo esse tempo em mãos?)
Em outro momento, um barquinho é colocado no centro de uma estrutura de papel, que o elenco vai agitando com maior intensidade até o final da cena. Lá está o barco, aguentando firmemente o mar mais e mais bravio, e aqui estamos nós, torcendo pra que ele não vire — quando o coitado virou, lá pelas tantas, as crianças urraram de novo, e urraram ainda mais quando ele voltou, firme e forte, à estrutura de papel e às ondas ferozes.
Eu lembro que, em 2014, quanto eu voltava de um festival no Chile, meu avião passou por uma tempestade, e eu lembro até hoje da admiração que eu sentia ao ver os relâmpagos cortando o céu ao meu redor — como nós éramos pequenos e ingênuos, numa caixa de metal, atravessando uma tempestade de raios. E como o mundo é palco de espetáculos vorazes.
Talvez viver seja atravessar essas águas turbulentas, ou essas tempestades eletrizantes, e achar graça na intensidade do todo. Perceber seu tamanho comparado ao oceano, ou ao céu, e achar graça na sua fragilidade. Curtir que a vida é caos e cais.
Lermentov escreveu que os rebeldes buscam a tormenta como se lá houvesse paz, e talvez ele tivesse razão.
(Mas, então, o que você faz com todo o espaço ao seu redor?)
Teve outra cena que me pegou bastante, as nuvens feitas de algodão doce e que dialogam com uma projeção de um barco, até que a chuva venha, e elas sejam desfeitas…
…mas aí os bastões onde as nuvens/algodão doce estavam começam a brilhar, e tudo vira uma espécie de rave.
É bonito porque uma coisa passa do seu estágio para o seguinte: a projeção, o algodão doce, a água, o bastão, tudo está em fluxo, são elementos que iniciam uma cena até que ela se encerre e até que a próxima se inicie, tudo seguindo um curso, uma fluência, uma dinâmica. Anicca, como diria o budismo.
Claro, isso sou eu, Fernando, tentando organizar o que se passou no palco e o que anda se passando em mim — o Google Spreadsheets, os boletos, o vazio existencial, a receita de beringela na Air Fryer que a minha amiga Ana me mandou por DM e a vontade de também uivar para uma Lua neon.
E, claro, essa é a coisa mais foda de A Grande Questão: o espetáculo, organizado quase que totalmente sem falas, episódico e apoiado na sua potência imagética, lança perguntas ao mesmo tempo em que abre espaços para que você as responda por conta própria. Uma espécie interseção entre o teste de Rorschach e os episódios do Pica-Pau Doidão dos anos 1990.
Ele confia que você vá dar conta do que está acontecendo, ou pelo menos que você vá curtir esse caos (talvez isso também valha pra experiência de estar vivo?)
De um jeito ou de outro, você pode sempre uivar para a Lua neon até o seu próximo aniversário. Parece bastante divertido, convenhamos.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena ,@cena.aberta.teatro e @agoracrítica, junto à produtora @corporastreado
A Grande Questão
Até 21/09. Sábados, às 11h
SESC Consolação — R. Dr. Vila Nova, 245 — Vila Buarque, São Paulo
Direção e dramaturgia: Carlos Canhameiro
Elenco: Carla Massa, Giscard Luccas, Marilene Grama e Paula Serra
Músicos: Paula Mirhan e Rui Barossi
Iluminação: Daniel Gonzalez
Figurino: Renan Marcondes
Cenário: Carlos Canhameiro e José Valdir Albuquerque
Imagens — Mariana Chama
Técnico de Som: Pedro Canales
Produção — Corpo Rastreado / Nathália Christine