Sobre “A Filha da Mãe”

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readJun 27, 2019

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Voltei pra casa depois de ter assistido a A Filha da Mãe conversando com meu namorado sobre nossas mães, e sobre como teria sido a experiência de ter visto a peça com elas. Ficamos conversando sobre as distâncias das nossas infâncias — um é filho de mãe solteira, o outro não; um passou por isso, o outro por aquilo — e as similaridades delas.

Conversamos sobre o medo de ver nossas mães envelhecendo, as histórias das nossas famílias (mães, tias, avós), as dúvidas sobre o quanto mudou a maternidade dos anos 80/90 pra cá. Pensando no quanto o milagre da maternidade, esse lance de padecer no paraíso e da realização da vocação de toda mulher tem a ver com religião (e subsequentemente, pecado), capitalismo e machismo. Como a revolução sexual e a popularização dos métodos contraceptivos impactou esse assunto, ao mesmo tempo em que ainda se acredita que se a mulher engravida, é por descuido dela e só dela, e que ela precisa cuidar da criança porque, afinal, na hora de virar os olhinhos tava bom, agora tem que assumir a responsabilidade, e como em vários períodos eleitorais, a pauta do aborto sempre surge como modo de atrair votos e contemplar setores conservadores da população, circunscrita à questão do moralismo e distanciada do entendimento de que é caso de saúde pública. Também lembramos de todas as histórias de violência obstetrícia que ouvimos falar, seja relatos de amigas ou em redes sociais.

Mas isso somos nós, dois homens, com vivências de dois homens, privilégios de dois homens, vendo o assunto a partir do prisma de dois homens. Me pergunto onde e como o espetáculo bateu em outras pessoas, com outras vivências e prismas. Se você for uma dessas pessoas e quiser me contar, vou adorar ouvir.

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Para mim, a força de A Filha da Mãe está em conseguir levantar essas questões sem didatismo ou sem subestimar a plateia. A partir da narrativa de uma mulher que engravida e se vê às voltas com a filha e com a mãe (e há aí uma reflexão sobre a passagem do tempo, a fragilidade da vida e a finitude), o texto de Livia Piccolo apresenta uma maternidade complexa, sem maniqueismos, vilanias ou respostas fáceis. Ao invés, é como um pêndulo que vai do fascínio ao pavor e de volta. Consegue, inclusive, ultrapassar o núcleo familiar da protagonista na última cena, ao comentar a violência e o extermínio sofridos pela população periférica — e nessa puta sacada, escapa de qualquer ranço classe média do qual poderia ser prisioneiro.

Se o texto e a direção de Livia Piccolo são bastante sólidos e em certos momentos, muito inspirados (especialmente o texto, na minha opinião), a atuação de Joana Dória… cacete! É uma delícia assisti-la e vê-la dar corpo à dramaturgia: a atriz consegue transitar entre força, fragilidade, raiva, acolhimento, assombro, simpatia e repulsa com bastante habilidade e com uma composição coerente. A palavra “elegância” me vem à mente quando eu penso no trabalho dela, embora eu não saiba dizer direito o porque e embora eu saiba que um comentário tão subjetivo como esse não vale num texto crítico. Mas, ok, segue o baile, achei elegante mesmo, perdoem a falta de padrão ABNT.

Inclusive acho o trabalho da atriz foda ao conseguir falar com naturalidade o texto, cheio de conjugações verbais formais, de um lirismo mais fácil de ser lido do que de ser dito ou ouvido. As vezes eu ouvia as palavras tão perfeitas e tão bem conjugadas com certo estranhamento, mas o trabalho de Joana Dória amenizava o baque. Não cabe a mim dizer se um português tão perfeitinho é um defeito ou uma escolha (tenho a impressão que é mais a segunda hipótese), mas cabe salientar que sempre que uma palavra ou conjugação soavam esquisitas, a habilidade da atriz suavizava tudo.

Também vale a pena notar as pequenas sacadas — bastante irônicas , eu diria — da direção, como a barriga que brilha no primeiro ato ou as pipocas do final. A barriga é interessante porque tem esses ares de realismo fantástico, de poesia, de milagre, que eventualmente serão desconstruídos (e revisitados) ao longo da encenação. Depois, mais pra frente, a luz vira algo que é meio microfone, meio luz de interrogatório, vai do lirismo pra uma coisa meio expressionista, que projeta mais sombras do que ilumina, que distorce a cara da atriz. É uma ressignificação interessante.

As pipocas colocam a platéia dentro do jogo sem ser apenas como observadora: o cheiro passa uma informação, o calor passa uma informação, o gosto passa uma informação. Até não ganhar a pipoca é uma informação. E aí tem esse negócio da pipoca no saquinho estar atrelada ao universo infantil, à saída da escola, à ida ao circo (você se sente meio criança ganhando pipoca dela), mas também remete àquele dia em que você chega em casa tão fodido, tão cansado, tão miserável, que só consegue preparar uma pipoca de microondas e chamar aquilo de janta. E também dá pra ler (veja, não digo que foi é assim, só digo que dá pra ser lido assim) como um aceno à sociedade do espetáculo, a ficar vendo a desgraça se desenrolando como se fosse entretenimento, ficar comendo pipoca vendo um noticiário mundo-cão que reporta que uma mãe foi assassinada na favela. Uma porrada de significados, legal pra caramba.

Essa última imagem, da protagonista comendo pipoca vendo TV é tão prosaica, tão mundana, que é bonita justamente por causa disso. A beleza do cotidiano, vulgar, da parede sem reboco e do sofá velho. Uma puta antítese ao início, da barriga iluminada, como se o parto envolvesse fadas e magia. Me lembrou também da Neusa Sueli no final de Navalha na Carne (mas não tô propondo aqui nenhum paralelo entre elas — e se há algum e eu não consegui captar ou desenvolver, por favor, me conte o que me escapou).

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Fiquei pensando de verdade que teria sido uma outra experiência ver A Filha da Mãe com a minha mãe e minha sogra junto. As conversas que isso não inspiraria. Então, sei lá, se você for assistir ao monólogo, leva sua mãe junto. Vê onde isso vai dar (e depois me conta).

A Filha da Mãe. Foto: Diogo Nazaré.

Ficha técnica:

Encenação: Livia Piccolo. Dramaturgia: Livia Piccolo com colaboração de Joana Dória. Atuação: Joana Dória. Assistência de direção: Luiza Simões. Cenário e Figurinos: Livia Piccolo, Joana Dória e Luiza Simões. Preparação Corporal: Ana Noronha.Iluminação: Sofia Boito. Sonoplastia: Livia Piccolo. Produção: Livia Piccolo e Contorno Produções. Assistência de produção: Madu Arakaki. Arte gráfica: Giovanna Cianelli. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli.

Serviço:

A FILHA DA MÃE

Duração: 60 minutos. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$30 (inteira); R$15 (meia-entrada); R$6 (credencial plena). Temporada: Até 30 de junho. Sábados às 21h e domingos, às 19h.

Viga Espaço Cênico — Rua Capote Valente, 1323.

Capacidade teatro: 35 lugares. Informações: (11) 3801 1843.

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Written by Tudo, Menos Uma Crítica

textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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